“Foi uma felicidade perceber que podia ser escritora com a tradução”
A poeta Margarida Vale de Gato prefere ver-se como tradutora, escritora secundária, marginal, satélite. Traduzir as palavras dos outros é a melhor forma de combater a personalidade obsessiva de uma criança que passava os verões entre o mar e os livros.
Comecei a contar histórias ao meu irmão, 22 meses mais velho, para que ele me fizesse companhia à mesa das refeições. Eu engonhava com a comida e para não ficar sozinha contava-lhe todos os dias um episódio alternativo da Heidi que desenvolvia na minha cabeça. Foi ele que me ensinou a ler quando eu tinha cinco anos. Sentava-me todos os dias ao pé dele para aprender com os manuais que ele usava na 2.ª classe. Talvez seja mais fácil aprender com uma criança que está também a aprender. Nesse Verão pus esses conhecimentos à prova porque passei as férias a ler os livros do Super Pato, um alter-ego super-heróico do Pato Donald, que estava em português do Brasil. Aprendi a ler com sotaque Morumbi.
Juntava as semanadas para comprar os livros da Colecção Azul. Aqueles de que mais gostei foram os da Frances Hodgson Burnett, ainda que agora perceba que aquilo era de fazer chorar as pedras da calçada. Mas eu não lia a Madame Bovary aos oito anos. Não dominava os clássicos franceses na adolescência. No livro A Princesinha está uma das descrições de absorção devido à leitura que fixei e com a qual me identifiquei na altura. A Sara Crewe, que é uma menina muito boazinha, tem finalmente um gesto de maldade quando, concentrada na leitura, é interrompida por uma criança que a perturba. E ela dá-lhe um estalo. Os livros para mim…
não uma paixão talvez, mas
nem sempre estando lá, a constância,
saber ter o prazer comigo mesmo como
também quando se mora próximo
ao mar e já a cada sonho se balança.
A escrita no papel surgiu depois como uma forma de me entreter sozinha. Fui sempre mais solitária do que convivial e havia uma vertente de expurgação no que escrevia. Fazia-o em papéis bastante improváveis como aqueles guardanapos semi-transparentes dos cafés. O que era mais íntimo ia para papéis mais perecíveis. Aquilo que eu achava que podia durar era escrito à máquina nos boletins do Totobola, o que permitia guardar uma cópia em papel químico. Ainda hoje é assim - escrevo e depois perco. Mas interessa-me esse duplo movimento. Quando se escreve está a inscrever-se qualquer coisa que é suposto que perdure, mas ao mesmo tempo eu procuro alguma fragilidade na escrita, acredito na mudança e acredito que aquilo que perdura com demasiada resistência muda menos. Talvez por isso não esteja a pensar escrever romances, apesar de escrever contos. A experimentação ocorre mais na forma breve - na poesia, no conto. O romance pede um investimento maior e por isso mesmo há menos experimentação. E também porque para escrever um romance é necessária coragem, disciplina e uma grande certeza da vocação. Eu fui evoluindo na questão de ter ideias demasiado fixas… Quis sempre ser escritora, mas com grande felicidade compreendi que a escrita tinha várias vertentes.
Houve um momento importante na minha vida em que percebi que me movia de forma muito alegre dentro das várias línguas e naturalmente canalizei a minha escrita para a tradução. Aos 13 anos fui viver para os Estados Unidos com a família e passei a frequentar uma escola americana. Quando descobri que sonhava em inglês e ouvia o Jacques Brel ou lia o Out of Africa fazendo a tradução simultânea na minha cabeça… Era uma felicidade!
Há uma fase na adolescência em que é necessário relativizar os absolutos. Construí desde cedo uma imaginação verbal escrita e isso se calhar prejudicou-me porque a persegui obsessivamente e isso pode ter feito com que não desenvolvesse outras aptidões.
Várias situações na minha vida me ajudaram a contrabalançar a minha fixação com o mundo intelectual, a minha personalidade obsessiva. A relação com a natureza, a vela - tirei a carta de marinheira aos 16 anos, fiz parte da tripulação de uma caravela, aprendi muito com a vivência em comunidade proporcionada por essas viagens… A obsessão é uma coisa solitária. Para viver em comunidade é preciso haver uma aprendizagem da flexibilidade. E a tradução ajudou-me muito.
Comecei a traduzir profissionalmente aos 22 anos. A tradução não se esgota. Um escritor como criador tem bloqueios, mas um tradutor não. A tradução tem algo daquelas tarefas tipicamente femininas como estender a roupa - começa e acaba ali. Por outro lado, a tradução é uma actividade de escrita e de leitura intensa - favorece uma leitura extremamente atenta e um estado de espírito de veículo, daquele que transporta de um lado para o outro. A tradução, ao contrário da obra, é efémera. E é a maneira mais actual de ler uma obra. Gostava muito de ler Camões traduzido para português. Aprendi muito a ler Camões na tradução do Landeg White, que o mostra como um viajante com um grande talento que teve o privilégio de participar e assistir às transformações do mundo. O tradutor não se exprime apenas, ele comunica. A primeira coisa que ensino aos meus alunos de tradução é a desconfiar da nossa leitura e a procurar sempre justificações e fundamentações para as escolhas que fazemos. É como diz a poeta e tradutora Mónica de la Torre - seldom are choices so purposeful - não há um sítio onde se façam escolhas com tanta intenção como na tradução.
Dois anos depois ouvi um comentário que tomei como crítica à minha personalidade. Um superior com quem tenho uma relação conflituosa disse de mim que eu preferia quebrar do que torcer. Há uma diferença ideológica fundamental entre a Europa e os Estados Unidos que é a diferença entre a flexibilidade e a integridade. Na Europa prezamos a honra e portanto ouvimos a expressão antes quebrar que torcer como uma virtude. Mas ele não o disse dessa forma e, apesar de essa crítica ter vindo de uma pessoa que não respeito particularmente, percebi que não é bom preferir quebrar a torcer. Torcer tem grandes benefícios, releva aspectos humildes que são importantes.
Senti-me sempre diferente. Não uma diferença arrogante, mas sentia-me desfasada, deslocada, demasiado canhestra para certas actividades. E em determinadas situações demasiado velha para a minha idade. Mas é necessário perceber que os outros também são únicos - todos sofrem como nós ou até mais radicalmente. A escrita é uma forma de tocar os outros. E a tradução é uma forma mais livre e feliz de exercer a escrita - contraria essa rigidez, essa obsessão. A tradução é um trabalho de torcer - ninguém quer estar a quebrar nada. É a diferença entre um universo e um satélite. Eu gosto muito da ideia do secundário, do lateral, do menor. Os satélites andam à volta, não são responsáveis por todo o universo. A tradução é um pouco isto. Gosto muito de pensar o intérprete, o tradutor, como um instrumento que não tem direito a um solo, mas sem o qual não existe orquestra.
Eu sinto-me escritora, mas sou uma escritora secundária. Tenho muita dificuldade em criar primariamente. Não sou organizadora de universos nem criadora deles. Escrevo por reação - tentativas de resposta em vez de perguntas. Existe um impulso de auto-suficiência em muitos escritores que não reconheço em mim. Eu gosto muito de estar sozinha, mas tenho a noção de que o meu olhar só se altera quando estou acompanhada por outros. O meu olhar não é transformador em si. A minha escrita é um movimento secundário - há algo que parte de outra pessoa e que me faz ruminar lentamente até chegar ao momento do poema.
Se calhar a escrita é sempre assim. O Edgar Allan Poe opôs-se ao conceito de imaginação orgânica, a tal imaginação criadora que estou a partir do princípio que existe. Ele escrevia que toda a criação era uma combinação de partes existentes e mudou o paradigma da inspiração para a construção, a composição. Segundo ele, talvez esteja a exagerar um pouco, não sei… A minha relação com a escrita é a de uma pessoa obsessiva que procura ser mais ampla e tolerante.