Reportagem

Paredes de Coura: eles estão lá quando o festival chega à vila

Fotogaleria

É um café, é uma mercearia, é um restaurante. Há pessoas por todo o lado, jovens que tanto espreitam futebol na televisão como o praticam nos matraquilhos. Atrás do balcão, ele só acede. “É na boa acampar ali em baixo com carro e tenda?”, pergunta uma recém-chegada, almejando os campos que a rodeiam. “Sim, sim”, respondem-lhe. Roda num pé, dá meia volta e grita: “Então já voltamos!” Nem trinta segundos depois, nova investida, mas já de um outro festivaleiro de “smartphone” na mão. “Posso pôr o telemóvel a carregar?” Resposta óbvia, que não tarda: “Sim, sim.” “Mas está tudo cheio”, lamenta, enquanto estuda as tomadas à sua volta, quase indistinguíveis tal é o emaranhado de fios e aparelhos de última geração. “Já viste ali atrás da televisão?”. Roda num pé, dá meia volta e lá vai ele.

 

Há 24 anos que José Loureiro, de 45, vê o Festival Paredes de Coura entrar-lhe pela porta — e ele não a abre, escancara-a. Cresceu entre as prateleiras deste café-mercearia, aberto pelo seu avô há 60 anos nos limites da Praia Fluvial do Taboão, e dali não arredou pé. Na vila, e não só, são famosas as bifanas e os caracóis à Loureiro que, todo o ano, atraem pessoas (inclusive “de fora”) para o local. Petiscos que não deixam de sair durante o festival, altura em que o negócio ganha mais um piso e serve refeições completas — o P3 encontrou uma frenética roda-viva de pratinhos de moelas com arroz de ervilhas, que algum glutão mais audaz acompanhava com uma patanisca, por uns simpáticos 3,70 euros.

 

Por estes dias, o Café do Loureiro é para muitos festivaleiros uma espécie de “pit stop” obrigatório; e ele, da sua box, não se faz de rogado, antes consente. É uma forma de “chamar as pessoas” para o espaço, sempre repleto nesta altura. Resulta, portanto. A dada altura, já um outro miúdo passou para trás do balcão para remexer na tal amálgama de fios: “Não há problema, os jovens agora têm outra educação”, diz, fazendo a comparação com as primeiras edições do “festival da terra”, aquelas a que ainda conseguiu ir. Agora já não dá: “O trabalho foi aumentando e ficou difícil conciliar as duas coisas.” Foi-se a música, ficou a labuta, para provável gáudio daqueles que, na derradeira despedida, já não conseguem trepar a rampa do estacionamento. “No último dia, há sempre carros que não pegam e vêm sempre cá pedir cabos para ligar à bateria.” “Sim, sim”, responde ele. Não dissemos que era um “pit stop”?

 

“Happy nights”

Como José Loureiro há muitos outros na vila que vivem o festival umbilicalmente à distância. É Coura para além de Coura, para fora do recinto, dos concertos, da Praia Fluvial do Taboão. Durante muitos anos, Martinha Miquelina viveu-o atrás da recepção da residencial que tomava o nome do seu apelido. A Pensão Miquelina fechou há dez anos, mas a sua história remonta ao século passado. O restaurante continuou com outra gerência e o prédio onde antes existia o histórico alojamento serve hoje de morada para a família; o segundo edifício, por seu turno, está alugado estes dias à organização do festival.

 

“Não tivemos pena de fechar, era uma trabalheira, sempre agarrados aos fogões”, diz Martinha, esquivando-se de quem passa para abrir a porta da casa. A entrada mantém o mesmo balcão em madeira, as fotografias, o candeeiro. Ainda há-de abrir outra vez, diz, entre a esperança e alguma certeza. “Os meus filhos têm vontade de o fazer, de renovar a residencial.” Vemo-la um dia depois, na esplanada de um café, entre uma pequena multidão. Conversa com o filho, sorri, observa; na véspera, já lamentava o que aí vem. “Gosto muito disto, de ver as pessoas, ainda bem que a direcção [do festival] nunca desistiu disto. É uma tristeza quando não há gente. O Inverno é horroroso.”

 

Mais acima, Maria Rosa, filha do proprietário do Café Central, um dos mais antigos da vila, faz eco das palavras da octogenária sem saber. “Adoro ver esta gente toda”, diz, numa pequena pausa do bulício que são estes dias. “O que mais gosto são as noites dos concertos na vila, é um estrondo. Desta vez até dancei ali no meio.” Gosta da confusão, do corre-corre, do trabalho a dobrar que vem com o festival. À noite, faz shots, aprendeu sozinha a arte. De vodka, gin, whisky, tudo. Estamos em “happy week”, como diz um cartaz que pende acima das cabeças: “5 finos + 1 = 5€, 6 finos + 1 = 6€”. São “happy nights”, graceja Maria Rosa, que à noite conta com a ajuda dos filhos ao balcão. Depois tudo acaba. “Fica vazio, meia dúzia de pessoas, fico com saudades do movimento.”

 

E, mais abaixo, na Loja da Feira 2 há um entra-e-sai de garrafões de água, bebidas alcoólicas, enlatados, gomas, gelo. E insufláveis, um dos grandes “hits” actuais da Praia Fluvial do Taboão. José Braga, empresário, tem 39 anos e quatro espaços comerciais; este, à entrada da Rua Conselheiro Miguel Dantas, é um ponto de passagem incontornável para muitos corajosos campistas que ousam enfrentar a subida até à vila. Lembra-se bem de como o festival começou quase “por brincadeira”, das actuações dos Boucabaca do presidente da Câmara, Vítor Paulo Pereira, dos “punks” desses tempos. Também ele já não consegue ir, o trabalho está primeiro, mas vai alimentando quem por ali passa. Que são cada vez mais jovens: “O público-alvo desceu, vai dos 17 aos 24 anos.”

 

A culpa é do “Buereré”

Um “festival sem táxis é triste”. É por isso que Fernando Lourenço, taxista em Paredes de Coura desde que regressou de França há 14 anos, espalha os seus cartazes por toda a vila, promovendo viagens ao “país e estrangeiro”. Nestes dias mal dorme. “Não tenho hora de me levantar, nem de me deitar” — na verdade, o P3 surpreende-o ao telefone, pelas 14h30, quando tinha acabado de chegar à cama. Mas não se queixa. Pelo negócio, claro está, mas também pelo “renascimento da vila”: “Faz-me lembrar os tempos em Paris. Era sempre muita gente”.

 

Choveu, por isso a fila à porta das Piscinas Municipais já vai longa. É sempre assim, se há chuva, há mais gente. Por 1,40€ os festivaleiros podem dar umas braçadas e, principalmente, tomar um banho de água quente. Há quem espere, e desespere, uma hora para tão ansiado momento, que é o caso de quem se encontra à porta no momento em que o P3 a atravessa. No ano passado, foram três mil pessoas; este ano, ainda não se sabia. Certo é que se terão cruzado com Vítor Calheiros e Manuel Viana, assistentes operacionais das instalações, o primeiro na área de desporto, o segundo na manutenção. Ambos trabalham ali há mais de 20 anos e acompanham desde sempre o festival. Conhecem-lhe as mudanças, não só por quem faz fila à porta, mas também porque continuam a ir até hoje ver os concertos. Sim, o público está mais jovem em “reflexo do cartaz”, são todos “mais calmos e educados” e muitos vão “pelo ambiente” e não apenas pela música.

 

E eis que Vítor diz que estamos na presença de um “verdadeiro festivaleiro” e aponta para o lado, para o seu colega Manuel, de t-shirt do Legendary Tigerman. Então porquê? A resposta vem pronta: “Fui a todas as edições, a todas as noites, dos 24 festivais. Só não fui a uma noite: à de sábado, de 1996.” À visita do P3 o festival ainda decorria, mas “a menos que algo acontecesse” não iria falhar a estatística. Estaremos na presença do fã n.º1? E logo um com costela “do rock”.

 

O melhor concerto que viu na vida? Mr. Bungle, em 2000. Destaque ainda para Rollins Band (1998), Lamb (1999) e Stone Temple Pilots (2001). E este ano? Thee Oh Sees (“Aquilo não foi apenas um concerto com duas baterias — era bateria sincronizada!”). Gostava mais dos cartazes anteriores do Festival Paredes de Coura, com sonoridades mais “pesadas” (basta dizer que não perde uma edição do Reverence Valada), mas continua a ir todos os anos, até porque “há sempre alguma coisa” que quer ver. E os filhos, que o acompanharam desde cedo, são agora, também eles, festivaleiros: o rapaz estaria no momento da entrevista em banhos de Coura, a menina tinha acabado de chegar do Boom. Ela que, em pequena, com dois ou três anos, era uma fã acérrima do programa “Buereré” da Ana Malhoa, a popular cantora que naquele sábado de 1996 marcou presença nas festas da paróquia da freguesia de Castanheira e assim, sem saber, quebrou a estatística do pai. “’Sacrifiquei’ essa noite para proporcionar o concerto da Ana Malhoa à minha filha”, recorda o pai, com um sorriso. Se a memória não lhe falha, e a Wikipédia acerta, as canções de Shed Seven, Mão Morta, Lovedstone e Kick out the Jams foram então trocadas pelo “Começar no A”. Coura é amor, não é à toa que se diz.

José Loureiro, Café do Loureiro
Maria Rosa (atrás do lado direito), Café Central
Manuel Viana e Vítor Calheiros, Piscinas Municipais
José Braga, Loja da Feira 2
Martinha Miquelina, Pensão Miquelina
Fernando Lourenço, taxista