Semenya ganha como esperado
Atleta sul-africana não deu hipóteses nos 800m. Mo Farah garantiu a dobradinha com vitória na légua.
A última jornada do atletismo, exceptuando a maratona, era composta só por finais, e entre elas havia três do meio fundo, com duas a serem garantidamente notícia quente, as de 5000m masculinos e 800m femininos.
Do lado bom, ou menos polémico, fica sem dúvida a prova masculina da légua. Mo Farah, o britâncio nascido na Somália, tentava chegar à segunda “dobradinha” olímpica em 5000m/10000m, tornando-se – se já não o era –outra lenda viva e activa do atletismo, dada a sua aura de invencibilidade nas distâncias clássicas, alicerçada em triunfos europeus, mundiais e olímpicos.
Farah voltava a enfrentar rivais sempre impotentes para definir uma táctica – se é que alguma existe – que lhes permitisse vencê-los. Rivais de grande classe, como os etíopes Dejen Gebremeskel (recorde pessoal de 12m46,81s), Muktar Edris (12m54,83s) e Hagos Gebrhiwet (12m47,53s). Agora quanto a quenianos, só para a próxima oportunidade. De um trio que incluía Caleb Ndiku e Isiah Koech, ninguém desse país chegou à final, num pequeno escândalo que quase passou despercebido.
Na final, o ritmo foi bastante vivo os etíopes fizeram o seu papel mas ninguém colocou qualquer ataque decisivo até 800m do fim. Foi mesmo Mo Farah que aí assumiu o comando e, ainda que com luta nos 200m finais – sobretudo do mais inesperado rival possível, o americano de origem queniana Paul Chelimo –, escapou para o título, de forma dir-se-ia inevitável, com 52,8s na derradeira volta e 2m23s no quilómetro final. Com 13m03,30s, Farah não ficou muito longe do recorde olímpico, enquanto Chelimo pulverizava o seu melhor para 13m03,90s e o etíope Gebrhiwet ficava com a medalha de bronze (13m04,35s).
Aos 41 anos o americano Bernard Lagat (quarto em Londres 2012) ainda alcançou o sexto posto, com 13m06,78s, e quanto aos outros etíopes Dejen Gebremeskel, medalha de prata há quatro anos, foi apenas 12º, e Muktar Edris desistiu.
Cumprida como se propunha esta parte da sua carreira, Mo Farah pode agora virar-se para a maratona neste próximo ciclo olímpico que culminará em Tóquio.
Do lado mais polémico ficam os 800m femininos. Como tinha sido anunciado, ao longo de toda a temporada, não houve qualquer atleta capaz de travar a sul-africana Caster Semenya. Nem sequer isso esteve perto de acontecer.
Na parte final da prova só Semenya parecia correr, as outras andavam para trás. Se na temporada regular dos grandes meetings Francine Niyonsaba, do Burundi, ainda teve, uma ou outra vez, um arremedo de reacção forte face à sul-africana, desta feita teve cedo de se conformar com as evidências.
Com uma passagem muito rápida aos 400m, a menos de 58 segundos a prova deveria, como aconteceu, permitir excelentes marcas. Semenya passou aos 600m na frente em 1m26,7s e cumpriu os 200m finais apenas um pouco acima de 28 segundos, destacando-se facilmente para concluir em 1m55,28s, novo recorde nacional, à frente de Niyonsaba (1m56,49s) e da queniana Margaret Wambui (1m56,89s, máximo pessoal). Em quarto lugar a canadiana Melissa Bishop baixou largamente o seu recorde nacional para 1m57,02s, em quinto a polaca Joanna Józwik progredia também para 1m57,37s.
Caster Semenya, de 25 anos, é cada vez menos um mistério. A hiperandrogenia evidente que ostenta leva a que as suas rivais não a vejam com bons olhos. Para todas ela, é tida como uma não-mulher. A IAAF continua a assobiar para o lado e não revela os dados das análises e dos tratamentos feitos à atleta, desde que em 2009 obteve o título mundial em Berlim, com o recorde pessoal que vigorou até esta temporada, de 1m55,45s.
Sebastian Coe entrou numa cruzada contra o “império do mal”, a Rússia, como o definiu (embora em contexto diferente) o seu ídolo Ronald Reagan, e não quer comprar mais uma guerra, nem deixar de ser politicamente correcto. Será portanto um folhetim a seguir nos próximos tempos. Ou melhor, dois folhetins…
Na outra final de meio fundo, a de 1500m, o queniano Asbel Kiprop era claro favorito, tentando conquistar o primeiro título olímpico na pista, após ter sido entronizado a posteriori como campeão em 2008, desde a desclassificação de Rashid Ramzi, do Barain.
Mas o queniano, e todos os outro finalistas, deixou que o americano Matt Centrowitz se colocasse na frente da corrida final apenas para travar o andamento, e de uma forma tão óbvia como nunca se viu. Foi a sua aposta, agradava a outros decerto, só a um ou dois não poderia satisfazer, e Kiprop seria sempre mais prejudicado. Os 800m foram passados em 2m16s, bons para uma corrida feminina e de facto o tempo final de 3m50,00s foi o mais lento nesta disciplina nos Jogos desde Los Angeles 1932, com o triunfo do italiano Luigi Beccali em 3m51,2s – e para mais na altura o recorde mundial estava em 3m49,2s, agora é de 3m26,00.
Incrível, mas verdade. Centrowitz apanhou-se na frente a 300m do final e era nítido que dificilmente de lá sairia. Num sprint final frenético o campeão de Londres 2012, Taoufik Makhloufi, da Argélia, chegou ao segundo lugar (3m50,11s), o neozelandês Nick Willis foi terceiro (3m50,24s9k para juntar à prata de 2008, e Asbel Kiprop finalizou em sexto, na maior desilusão da sua careira, já que em Londres 2013 estava debilitado. O outro queninao, Ronald Kwemoi, caiu durante a prova e acabou em 13.º e último.
Matt Centrowitz, que já havia sido medalhado em dois campeonatos do mundo ao ar livre, obteve assim duas vitórias cruciais no mesmo ano, o título mundial em pista coberta em casa, em Portland, e agora o título olímpico com a prova mais estranha que jamais se viu.
Nas duas finais de disciplinas mais técnicas havia vários aspectos interessantes a equacionar.
No salto em altura feminina digladiavam-se, entre outras, duas atletas nos extremos etários, a espanhola Ruth Beitia, de 37 anos, recentemente coroada campeã europeia pela terceira vez consecutiva, mas sem qualquer medalha olímpica no palmarés, sendo esta a última oportunidade para o conseguir, e a americana Vashti Cunningham, de 18 anos, e já vencedora dos Mundiais de pista coberta em Março passado. E também tentava a sua primeira coroa olímpica a antiga dominadora total do salto em altura, a croata Blanka Vlasic, batida de forma inesperada pela belga Tia Hellebaut nos Jogos de 2008 e depois lesionada e impedida de ir a Londres 2012.
Quanto a Vlasic poder levar o seu sonho adiante, parecia algo bom de mais para ser verdade. E de facto assim aconteceu. Apesar de ter passado 1,97m e ter ainda tentado o título olímpico a 2,00m, Vlasic voltou às medalhas com o bronze, o que é de facto notável, mas o lugar principal não foi seu.
Vashti Cunningham, por seu lado, não foi além de 1,88m, fasquia inicial, e ficou em 13º lugar. Já Beitia esteve ao seu melhor. A atleta de Santander precisou de três saltos apenas para chegar a 1,97m (1,88m, 1,93m e 1,97) e ficava logo em excelente posição. Também a búlgara Mirela Demireva, fazia 1,97m ao primeiro salto, depois Vlasic passou à segunda tentativa e a recordista americana Chaunté Lowe à terceira.
Beitia ficava em vantagem, antes de todas tentarem 2 metros exactos. Nenhuma das envolvidas conseguiu passar, mas como saltava primeiro a espanhola teve de acompanhar ansiosamente o derrube de todas elas no terceiro e último salto a 2 metros. Depois disso pôde comemorar, era campeã olímpica, e tinha a melhor versão medalha que lhe faltava. Lowe ficou em quarto lugar, Demireva em segundo. A búlgara perdeu o título olímpico devido a uma falha, sempre considerada espúria, à tal fasquia inicial de 1,88m.
No dardo masculino havia gente de todo o lado com possibilidades. A escola alemã estava em força, com os seus três atletas, Thomas Röhler, líder do ano com 91,28m (mas com um resultado desanimador há um mês nos Europeus, em quinto), Johannes Vetter e Julian Weber, ao contrário da Finlândia, que só tinha Antti Ruuskanen, e uma vez mais apareciam na final Keshorn Walcott, de Trinidade e Tobago, há quatro anos o mais inesperado vencedor olímpico de sempre, e o queniano Julius Yego, campeão mundial no ano passado. Yego parecia menos forte que nessa ocasião, já Walcott fizera a melhor marca da qualificação por larga margem, com 88,68m.
Numa prova espectacular e (quase) sempre imprevisível, desta feita foram os mais cotados que se impuseram. Yego entrou logo com o seu melhor do ano por larga margem, com 88,24m, mas depois lesionou-se e não fez mais nenhum lançamento válido. Esta marca sobreviveu quase todo o concurso na frente e acabou por lhe dar a medalha de prata. Walcott subiu até 85,38m, ao segundo ensaio, e já não melhorou, mas isso foi suficiente para relegar no final das contas o alemão Vetter para quarto, por seis centímetros.
Já Thomas Röhler voltou a estar de acordo com a sua melhor versão. Abriu com 87,40m e ao quinto lançamento passou para a frente de forma definitiva, com a grande marca de 90,30m, perto (a 27 centímetros) do recorde olímpico do já retirado norueguês Andreas Thorkildsen.
Aos 24 anos, Röhler confirmou um talento invejável e apesar da reconhecida força da Alemanha no dardo, e nos lançamentos em geral, apena dois germânicos haviam sido campeões olímpicos no dardo antes dele, Gerhard Stöck em 1936, em Berlim nos Jogos de Hitler, e Klaus Wolfermann em 1972, também na Alemanha, em Munique, numa final imortal em que superou, com 90,48m, o soviético Jänis Lüsis por apenas dois centímetros.
Como sempre as estafetas de 4x400m fecharam a jornada, com os Estados Unidos como claros favoritos, em especial no lado feminino. De facto ganharam as duas corridas, nas mulheres com 3m19,06s (melhor marca mundial do ano), diante da Jamaica (3m20,34s) e da Grã-Bretanha (3m25,88s); e nos homens com 2m57,30s, igualmente tempo líder de 2016, face de novo à Jamaica (2m58,m16s) e às Bahamas (2m58,49s), estes os campeões olímpicos de 2012 que conseguiram preservar o bronze por pouco no final, devido a uma excelente corrida de Kévin Borlee, levando a Bélgica a fechar com 2m58,52s, recorde nacional.
Fechar por fechar, os Estados Unidos rolaram sobre ouro na jornada final do Rio, faltando só a maratona para concluir os Jogos, e dominaram por completo o atletismo olímpico