Buçaco: um deserto com portas e água por todo o lado

Nesta mata perto do Luso, o céu e a terra encontram-se. Pelo menos segundo os carmelitas descalços, que no século XVII ali escolheram construir uma casa e um espaço de clausura entre as árvores. Uma pequena exposição serve agora de convite a uma visita a esta serra de onde se vê o mar.

Capelas da via sacra na Mata Nacional do Buçaco, onde a natureza e a arquitectura se contaminam
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Capelas da Via Sacra na Mata Nacional do Buçaco, onde a natureza e a arquitectura se contaminam Rui Gaudêncio
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A maioria das pinturas é da autoria dos monges da ordem Rui Gaudêncio
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No interior, o convento foi sofrendo alterações desde a sua fundação Rui Gaudêncio
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O Palace Hotel do Buçaco foi construído entre 1888 e 1907 e conta com o traço de vários arquitectos Rui Gaudêncio
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Um dos altares das capelas da via-sacra Rui Gaudêncio
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A entrada principal do Deserto, a das chamadas Portas de Coimbra Rui Gaudêncio
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No Buçaco, o património natural e o construído misturam-se Rui Gaudêncio
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O Palace Hotel do Buçaco está hoje no centro de um contencioso jurídico Rui Gaudêncio
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A pequena exposição no Casino do Luso é sobretudo um convite para visitar a mata Rui Gaudêncio
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Uma das sete fontes da mata tem uma escadaria monumental, cenográfica Rui Gaudêncio
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Filipe Teixeira é formado em História de Arte e Arquitectura Paisagista Rui Gaudêncio
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Entrada principal do Convento de Santa Cruz Rui Gaudêncio
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Pintura mural na capela que evoca o palácio de Pôncio Pilatos Rui Gaudêncio
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Grupo escultórico em terracota numa das mais de 20 capelas da via-sacra Rui Gaudêncio
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No interior do convento são muitos os altares Rui Gaudêncio
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No convento original, quase todo demolido para construir o hotel, a igreja estava no meio dos claustros, como no Templo de Salomão, em Jerusalém Rui Gaudêncio

Estava no noviciado quando visitou a Mata Nacional do Buçaco pela primeira vez. Em breve Joaquim Teixeira seria um carmelita descalço, frade da ordem que escolheu esta floresta nos arredores do Luso para ali fundar, em 1628, um dos seus famosos Desertos. Há 30 anos que este padre, hoje o principal responsável por esta comunidade religiosa em Portugal, regressa para se deixar encantar por toda a “harmonia, leveza e suavidade” da mata. E às vezes regressa sozinho, porque o silêncio é um dos ingredientes principais da experiência e faz-lhe falta.

“O Buçaco é belo olhando para a terra e é belo olhando para o céu”, diz, apressando-se a explicar uma frase que, sabe, não se compreende logo à primeira: “Ali a paisagem é também, e sobretudo, uma construção do espírito. Mesmo quem não acredita percebe que há nela um diálogo entre o tangente, o visível, e aquilo que nos ultrapassa, chamemos-lhe Deus ou não.”

Joaquim Teixeira, 51 anos, chama-lhe Deus e usa a palavra “céu” como reflexo do ideal de harmonia e perfeição que os carmelitas ali perseguiam, quer na solidão exigente da vida na mata, dedicada à contemplação e à oração, quer na vida comunitária do convento em que os monges se punham ao serviço dos outros. No Deserto do Buçaco, garante, as duas dimensões combinavam-se sem sobressaltos e, juntas, fizeram nascer uma paisagem que é hoje “coisa rara”. Há quem diga até única.

Filipe Teixeira, historiador de arte e arquitecto paisagista, é o comissário da pequena exposição que até 15 de Outubro, no casino do Luso, se propõe mostrar até que ponto o Buçaco é uma construção carmelita, servindo ao mesmo tempo de convite a uma visita à mata, absolutamente indispensável. Painéis didácticos e maquetas fazem o enquadramento da ocupação daquele espaço que começou por ser sagrado, ocupado formalmente pelos frades entre 1628 e 1834 (o último morreu em 1860), e depois se tornou “profano” com o decreto de extinção das ordens religiosas regulares, que vem acabar com todos os conventos, mosteiros e colégios a elas afectos, passando estes bens a ser património do Estado.

Se percorrermos a sala do casino da vila termal, ouvindo a música composta em Évora e contemporânea da criação da mata, temos de imediato acesso a uma definição sumária do que é um deserto carmelita e somos chamados a identificar na planta do Buçaco as capelas da Via Sacra e as ermidas onde os frades viviam em total recolhimento, retirados do mundo.

“Os carmelitas chamavam desertos às suas cercas conventuais”, esclarece Filipe Teixeira, explicando que uma cerca conventual é o território de um mosteiro ou convento, geralmente bem delimitado por um muro, onde vive determinada comunidade religiosa. No caso do Buçaco, tratava-se da dos frades carmelitas descalços, um ramo da Ordem do Carmo, nascida nos finais do século XI no Monte Carmelo (Palestina), que surgiu em 1593 como resultado de uma reforma feita por Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz.

“A construção destes desertos, que criam uma paisagem muito específica em que é evidente a harmonia entre o que é dos homens e o que é da natureza, obedece a uma série de regras e traduz a maneira de estar dos carmelitas, a maneira como vivem”, acrescenta este técnico da Fundação Mata do Buçaco (FMB), criada em 2009 com o principal objectivo de recuperar, requalificar e proteger todo o património natural e edificado daquele conjunto monumental que ocupa 105 hectares (90 deles de floresta murada) e está classificado como imóvel de interesse público.  

Quem hoje passeia pelo recinto da mata encontra um espaço bem diferente daquele que cativou os monges que há quase 400 anos o escolheram para ali criar uma base em Portugal. Depois de andar pelo país, passando por Miranda do Corvo e Trás-os-Montes, a pequena delegação da ordem, encabeçada por Frei António do Santíssimo Sacramento, estava decidida a estabelecer-se em Sintra, mas a proximidade da corte e de outras distracções levou o principal responsável por estes religiosos a rejeitar a serra nos arredores de Lisboa onde se tinham já fixado outras congregações. O facto de o mar estar ali bem perto também tornava mais difícil a criação de uma floresta como a que pretendiam, conta o historiador de arte e arquitectura Paulo Varela Gomes (1952-2016) no livro Buçaco, o Deserto dos Carmelitas Descalços. 

Os carmelitas usavam a palavra “deserto” para designar os lugares inóspitos e longe de qualquer povoação onde “os monges viviam como os Padres do Deserto, os eremitas do cristianismo primitivo”, escreve o mesmo académico num artigo para um número da revista Monumentos integralmente dedicado à mata e ao seu património. O deserto destes carmelitas, sintetiza, pressupunha a existência de um espaço delimitado por um muro, com um mosteiro preparado para a vida em comunidade e ermidas onde os religiosos se pudessem isolar. Tudo isto com uma porta (ou mais). E é o que encontramos no Buçaco, mesmo que do coberto vegetal que os monges criaram já pouco reste e que o seu convento tenha sido demolido na quase totalidade  ficou a Igreja, pouco mais  para que se pudesse construir o Palace Hotel, entre 1888 e 1907. 

“A grande originalidade dos carmelitas é esta combinação da vida em comunidade e da vida em isolamento”, diz Filipe Teixeira. “O Buçaco é feito para esse equilíbrio, para este bipolarismo espiritual.”

Sozinhos e em comunidade

Foi nestas terras do Luso recebidas do bispo-conde de Coimbra, D. Manuel Saldanha, que os carmelitas deram corpo a um dos famosos Desertos que a ordem espalhou pela Europa e pelo Novo Mundo (28 ao todo, sendo o do Luso o 12.º), moldando a paisagem durante mais de 200 anos. Ali construíram uma casa-mãe – o Convento de Santa Cruz, hoje a precisar de uma intervenção urgente – onde trabalhavam em comunidade quando o ritmo da sua devoção assim o exigia; ali construíram 11 ermidas de habitação onde os frades viviam como eremitas na maior parte do tempo; 23 capelas de devoção que formam uma Via Sacra singular; e sete fontes, uma delas com uma monumental escadaria entre as árvores, cenográfica, que a água parece descer degrau a degrau. 

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A principal entrada da mata de clausura, as chamadas Portas de Coimbra Rui Gaudêncio

A estas edificações há que juntar ainda três portas abertas na cerca que delimita o ermitério onde os irmãos viviam em clausura. Estão ali para mostrar que o que fica entre muros – “uma vida consagrada à contemplação, em que os frades estavam muito perto da natureza e em condições que hoje acharíamos miseráveis”, explica Filipe Teixeira não está ao alcance de todos.

O padre carmelita Joaquim Teixeira resume a rotina da comunidade nos 200 anos que ali se manteve: durante a semana, a maior parte dos frades vive nas ermidas espalhadas pela mata, recebendo uma ou duas visitas do prior do convento, que com ele levava pão, fruta e legumes (a dieta era rigorosa, estando vedado o consumo de carne ou peixe); ao domingo, os monges percorriam a avenida do convento para assistir à missa em comunidade. 

“É verdade que a vida na mata era dura, mas é preciso ver que a austeridade carmelita tem uma certa suavidade, é diferente da franciscana, mais rigorista”, ressalva Joaquim Teixeira, para quem a reclusão no deserto significa uma “retirada estratégica”: “Os frades eram chamados à clausura em isolamento para olharem o mundo com os olhos de Deus. Mas eles também subiam o monte [a mata espraia-se por uma serra que tem na Cruz Alta o seu ponto mais elevado], abdicando de conforto, de sons e de imagens, para poderem olhar lá para baixo, para as povoações que depois deveriam servir. Não se recolhem para fugir do mundo, recolhem-se para servir o mundo.”

Nestas pequenas ermidas, de que hoje só restam oito, havia uma capela, uma pequena sacristia, uma cela para dormir e um espaço de cozinha, assim como uma horta, cultivável graças à proximidade constante da água. “A água é muito importante para os cristãos – está lá no baptismo como símbolo do Espírito Santo  e a que corre nas nossas fontes é água do Luso, daquela que costumamos beber engarrafada”, brinca o arquitecto paisagista da FMB. Estas casas estão hoje a precisar de intervenção urgente. Apenas uma delas está integralmente reconstruída desde o Verão do ano passado, a Ermida de São José, depois de um dos violentos temporais que destruíram 40% da mata em 2013/2014 ter feito cair sobre o telhado um cedro gigantesco.

“O cedro é uma árvore com conotações bíblicas muito variadas”, escreve Varela Gomes, “é a árvore por excelência criada por Deus” e foi a única espécie exótica introduzida pelos carmelitas num espaço que tem hoje mais de 250 tipos de árvores e arbustos. Há pinheiros bravos e medronheiros, carvalhos e fetos, aderno e loureiro, azinho e sequóias. O célebre cedro do Buçaco (Cupressus lusitânica) terá sido trazido do México e os exemplares que hoje restam atingem portes incríveis.  

Proibido cortar árvores

Para os ver basta caminhar pela avenida que liga o que resta do Convento da Santa Cruz às Portas de Coimbra, principal entrada do Deserto do Buçaco. O hotel que hoje se ergue junto à igreja esteve para ser construído aqui, lembra Filipe Teixeira, evocando o projecto original do arquitecto italiano Luigi Manini, que a exposição no casino, feita com a colaboração da Fundação Luso, mostra.

É também nesta entrada que estão afixados dois importantes documentos do Vaticano. Na primeira lápide, um aviso do Papa Gregório XV sobre a proibição de acesso às mulheres, comum nestes espaços carmelitas; na segunda, um original édito do Papa Urbano VIII que proíbe o abate de árvores dentro da cerca “sem licença expressa do prior”, ameaçando com a excomunhão quem o ignorar. “É uma das primeiras leis internacionais de protecção da natureza”, diz o paisagista-historiador, reconhecendo que as intenções papais não eram apenas as de um conservacionista, mas as de um homem preocupado em garantir que quem ali mandava era a Igreja. 

“Os carmelitas sabiam proteger o mais importante ornamento da sua mata, as árvores, ou seja, a própria natureza composta e usada como linguagem e símbolo da antiguidade sagrada da ordem do carmelo descalço”, lê-se no livro de Varela Gomes sobre o Buçaco, em que o historiador explica que os embrechados – técnica de embutidos de pedra que formam padrões vários – que se encontram nas paredes exteriores do convento, nas ermidas, nas capelas da via-sacra e nas Portas de Coimbra (onde nos dias bons, sem fogos, se vê o mar de Mira e da Figueira) também são uma forma de interligar o humano e o natural. “Com os embrechados, a arquitectura imitava a natureza. Com as árvores e as flores, os bosques e os prados artificiosamente dispostos ou descritos como tal (o que é o mesmo), a natureza imitava a arquitectura.”

No Convento de Santa Cruz, a igreja ficava no meio dos claustros “porque foi inspirada no Templo de Salomão, o primeiro grande espaço sagrado de Jerusalém”, acrescenta o paisagista Filipe Teixeira. “A pedra e a cortiça que aqui se vê no chão e no tecto vêm das redondezas. Os monges usavam sempre os materiais que tinham à mão, a arquitectura que faziam era sempre muito sustentável.”

Nos corredores do convento, em que se sente o peso da “austeridade suave” da ordem, para usar as palavras do padre Joaquim Teixeira, há dezenas de turistas, na sua maioria franceses e espanhóis, os mesmos que depois encontramos a beber água nas fontes e a percorrer a mata, subindo a serra para cumprir a Via Sacra que D. Manuel Saldanha quis ver construída a partir de 1644 e onde não falta, sequer, uma recriação do palácio de Pilatos, em cuja varanda o governador romano da Judeia terá entregue o destino de Jesus à multidão. Esta capela do Pretório e a do Calvário “são tão interessantes do ponto de vista da arquitectura que singularizam o Buçaco não só entre os conjuntos arquitectónicos carmelitas como entre muitos sacromontes existentes na Europa e na América”, escreve Varela Gomes, chamando a este conjunto um “parque temático cristão” que simboliza a cidade de Jerusalém.

Subindo a Serra do Buçaco chega-se à cruz alta, o mais privilegiado dos miradouros da mata e lugar de eleição do padre Joaquim Teixeira. “Dali vê-se o mar e isso faz com que o Buçaco se pareça muito com o Monte Carmelo, que é o modelo de todos os desertos carmelitas. Também ele tinha muita vegetação e um certo ar de paraíso em que as pessoas podem viver em harmonia perfeita com as outras criaturas”, explica, garantindo que os monges da ordem ainda ali vão com frequência por sentirem que parte da sua identidade está entre aqueles cedros e ermidas. “Aqui há uma filosofia transformada em paisagem e percebe-se o que o superior geral da ordem quis dizer no século XVII ao chamar ao Buçaco o céu na terra, um céu às direitas num mundo às avessas. É que o horizonte do Buçaco projecta a alma. Não é um exagero dizer isto porque na beleza daquele lugar projecta-se a beleza de Deus.”

Do país e do mundo

Desde Maio que o conjunto formado pelo Deserto dos carmelitas e pelo Palace Hotel faz parte da lista indicativa de Portugal a património mundial, um pré-requisito indispensável para que se comece a trabalhar a sério numa candidatura à Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), onde o país tem já inscritos 26 bens (22 materiais, distribuídos por várias categorias, e quatro imateriais).

Um projecto ambicioso se atendermos ao facto de o Buçaco não ser considerado ainda, sequer, monumento nacional (o PÚBLICO perguntou ao órgão competente, a Direcção-Geral do Património Cultural, como está o processo de reclassificação e foi informado de que está à espera de parecer da Secção do Património Arquitectónico e Arqueológico do Conselho Nacional de Cultura. "Em caso de parecer favorável proceder-se-á a consulta pública e posterior envio à tutela para submissão a Conselho de Ministros").

António Gravato, presidente da Fundação Mata do Buçaco, tem esperança de que, até ao final do ano, o estatuto patrimonial do Buçaco mude, e conta começar e concluir em 2017 as obras no convento (cobertura e instalação eléctrica) e nas capelas da via-sacra, orçadas em 700 mil euros. Para as fazer está a concorrer a fundos do Portugal 2020. “Não há outra maneira”, diz ao PÚBLICO. “Esta fundação não conta com qualquer contribuição fixa da administração central.” O orçamento de 2016 é de um milhão de euros, prevendo-se que mais de 80% provenha de receitas próprias bilheteira (teve 230 mil visitantes em 2015), aluguer de espaços e venda da madeira das árvores que vão caindo  e o restante da Câmara Municipal da Mealhada.

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O Palace Hotel do Buçaco numa aguarela de Luigi Manini Cortesia: SIPA/Fundação Mata do Buçaco

As obras no convento, onde um incêndio na noite de Natal de 2014 destruiu por completo uma pintura de Josefa de Óbidos, importante artista do barroco português, são “absolutamente prioritárias”, mas “de emergência”: “Todo o conjunto precisa de uma grande intervenção, assim como as ermidas. Quando a fundação foi criada, a principal preocupação era a mata, a floresta. Agora temos de nos concentrar no património construído. Mas neste momento não há condições financeiras para avançar com tudo o que precisa de ser feito.”

A equipa da fundação viveu recentemente momentos de grande preocupação, quando os incêndios nos concelhos da Mealhada, Mortágua e Anadia deixaram o fogo nas imediações da mata. Foram dias sem dormir em que a autarquia, os sapadores e os profissionais do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas não arredaram pé, diz Miguel Gonçalves, responsável pela comunicação da FMB. “Quem vem de fora talvez não sinta, mas as pessoas têm uma ligação muito especial a este lugar.” O Padre Joaquim Teixeira sabe do que ele fala. É por isso que tem muitas vezes vontade de regressar àquele Deserto.

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