Sem glúten
Há coisas inacreditáveis que são verdade e outras, que parecem certas, não resistem a uma análise crítica. A doença celíaca está ligada à ingestão de glúten, que afecta 1% da população. Mas há hoje muito mais pessoas que acreditam que o glúten lhes faz mal. A sério?
Na página de Internet de uma conhecida cadeia de lojas de produtos naturais encontram-se 677 produtos sem glúten, agrupados numa secção própria. Pão, cereais, bolachas e muitos outros alimentos que normalmente têm glúten. O glúten é uma combinação de proteínas que se encontra nalguns grãos de cereais, como o trigo, a cevada, o centeio e a aveia, que são moídos para fazer farinhas. As implicações de uma dieta sem glúten são grandes, como muito bem sabem as pessoas que sofrem de doença celíaca. Quando consomem glúten o seu sistema imunitário ataca o intestino delgado, dificultando a absorção de nutrientes. Mas este texto não é sobre doença celíaca. É sobre sensibilidade não celíaca ao glúten.
Há hoje muitas pessoas que, apesar de não terem um diagnóstico de doença celíaca, consideram que o glúten lhes causa problemas. Os doentes celíacos não podem realmente consumir glúten, mas estima-se que apenas uma cada 100 pessoas sofra dessa condição. Há muitas mais que procuram evitar o glúten. Um estudo de opinião realizado em 2015 revelou que um em cada cinco norte-americanos quer consumir produtos sem glúten.
Sensibilidade não celíaca ao glúten
A designação foi proposta em 2012 na sequência de uma reunião de 15 especialistas realizada em Londres. Aplica-se às perturbações relacionadas com o glúten que não tenham uma origem auto-imune (como a doença celíaca) nem alérgica (como a alergia ao trigo). É uma definição por exclusão de partes e abrange manifestações clínicas bastante heterogéneas. Para além dos problemas gastrointestinais, os sintomas podem incluir alterações de comportamento, dores nos ossos e articulares, cãibras, perda de peso ou fadiga crónica. O diagnóstico é geralmente feito pelo próprio doente. Mas, e apesar de muitas pessoas estarem certas de sofrer desta sensibilidade não celíaca ao glúten, a sua existência é controversa. Claro que não há razões para duvidar dos sintomas das pessoas que pensam que a têm. A questão é se são mesmo causados pelo glúten.
O primeiro estudo para avaliar os efeitos do glúten em doentes não celíacos foi feito em 2012 na Universidade de Monash, na Austrália, com um grupo de pacientes que sofriam de vários problemas gastrointestinais sem causa conhecida. Não tinham doença celíaca, mas todos se consideravam sensíveis ao glúten e seguiam uma dieta sem glúten. No início continuaram a sua dieta habitual, sem glúten. Ao fim de algumas semanas foram “desafiados” com duas fatias de pão e um queque por dia.
Nalguns casos, o pão e o queque tinham glúten, noutros não. Os pacientes não sabiam se estavam a consumir glúten ou não. E isto é importante, porque é natural que os sintomas aumentem simplesmente porque as pessoas sabem que voltaram a consumir glúten. Sessenta e oito por cento dos pacientes que estavam no grupo do glúten disseram que os seus sintomas tinham piorado. Ao passo no grupo de controlo (sem glúten), apenas 40% dos pacientes relataram um aumento dos sintomas. Os autores escreveram nas conclusões: “A intolerância não celíaca ao glúten pode existir, mas não foram elucidadas pistas acerca do mecanismo.” Mas a história não acaba aqui.
A reviravolta
Depois de 2012 foram feitos vários outros estudos. Entre eles destaca-se um segundo estudo do mesmo grupo da Universidade de Monash. Desta vez os investigadores foram muito mais rigorosos. Voltaram a recorrer a doentes com auto-diagnóstico de sensibilidade não celíaca ao glúten, mas usaram testes mais exigentes para se certificarem que estes não tinham de facto doença celíaca. E descobriram que muitos dos candidatos tinham e foram, por isso, excluídos do estudo. Os participantes desta vez seguiram uma dieta de eliminação do glúten inteiramente definida pelos investigadores.
Como vários alimentos que contêm glúten também podem ter outras substâncias capazes de causar sintomas gastrointestinais, foram feitas várias dietas diferentes, de modo a tentar isolar o efeito do glúten. Depois de uma primeira dieta de eliminação e de serem desafiados com glúten, os pacientes voltaram a uma segunda dieta de eliminação e foram desafiados de novo. Em ambas as fases a resposta atribuída especificamente ao glúten foi muito baixa, indicando que os sintomas eram causados por outros alimentos. E a consistência também foi baixa: os pacientes que relataram um aumento dos sintomas face à ingestão de glúten na primeira fase não foram os mesmos que o fizeram na segunda fase.
Em que ficamos?
Não há critérios clínicos claros para diagnosticar a sensibilidade não celíaca ao glúten, como conclui uma recente revisão sistemática da literatura médica. E o auto-diagnóstico abarca muitas situações diferentes. Em muitos casos os sintomas gastrointestinais são provocados por outros componentes da dieta (como os frutanos), que também são reduzidos ou eliminados como efeito colateral de uma dieta sem glúten (mas não é a mesma coisa fazer uma dieta de eliminação de glúten ou de outra coisa qualquer). Inclui também muitos celíacos não diagnosticados. É importante esclarecer sempre essa possibilidade, pois a doença celíaca pode ter complicações graves se não for diagnosticada e tratada.
Os investigadores de Monash repararam ainda que muitas pessoas, apesar de manterem sintomas gastrointestinais significativos, optavam por continuar a dieta sem glúten porque se “sentiam melhor”. Assim, resolveram fazer um outro estudo, cujos resultados sugerem que o glúten é capaz de induzir sintomas de depressão. Mas este possível efeito psicológico está ainda pouco estudado. Removendo todas estas possíveis confusões, sobra algum espaço para a existência da sensibilidade não celíaca ao glúten? Aparentemente, não muito. Mas o assunto está longe de estar encerrado.
Bioquímico