Uma série para “não deixar que a PIDE fosse apenas um nome”
Entrevista a Jacinto Godinho, jornalista e autor da série documental A PIDE Antes da PIDE, que procura resgatar os rostos dos resistentes e dos agentes que fizeram as polícias políticas entre 1926 e 1945 - as que vieram antes da PIDE.
A PIDE Antes da PIDE foi muitas coisas. Mas de designação para designação ou de líder para líder, foi sempre a polícia política do Estado Novo, um dos sinónimos da repressão e da cultura da ditadura portuguesa. Nunca foi, porém, um conjunto de nomes e de rostos bem gravados na memória colectiva. A PIDE Antes da PIDE é agora uma série da RTP2, candidata a ser uma das mais relevantes produções portuguesas documentais de 2016, realizada por Jacinto Godinho. Jornalista, professor universitário e investigador, vive desde 2008 o projecto de fazer uma História da PIDE, versão audiovisual, e quer contar histórias da polícia política com gente dentro. E fazer a ponte entre a investigação científica e a divulgação para o grande público
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A PIDE Antes da PIDE foi muitas coisas. Mas de designação para designação ou de líder para líder, foi sempre a polícia política do Estado Novo, um dos sinónimos da repressão e da cultura da ditadura portuguesa. Nunca foi, porém, um conjunto de nomes e de rostos bem gravados na memória colectiva. A PIDE Antes da PIDE é agora uma série da RTP2, candidata a ser uma das mais relevantes produções portuguesas documentais de 2016, realizada por Jacinto Godinho. Jornalista, professor universitário e investigador, vive desde 2008 o projecto de fazer uma História da PIDE, versão audiovisual, e quer contar histórias da polícia política com gente dentro. E fazer a ponte entre a investigação científica e a divulgação para o grande público
Neste projecto, com coordenação científica de Irene Pimentel, faz algumas descobertas e desenterra imagens nunca antes interpretadas. Revela que Agostinho Lourenço, fundador e director da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), antecessora da PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), tinha ligações à Maçonaria; mostra fotografias inéditas de presos dentro das celas do Aljube e novas imagens do primeiro campo de concentração em Cabo Verde, construído em 1931 no Tarrafal. Fala da sensação de ter “cinco camiões TIR de informação na cabeça” depois de entrevistar o máximo de intervenientes possível, com a urgência do tempo e das idades. Viu centenas de imagens, rostos que aprendeu a conhecer, que depois identificou noutros contextos.
“Uma série magnífica", disse o historiador Fernando Rosas ao Jornal de Letras em Junho, teve uma média de 100 mil espectadores na sua primeira exibição, entre 28 de Maio e 24 de Julho na RTP2. Essa audiência, diz Teresa Paixão, directora de programas da 2, “só foi abalada quando a exibição coincidiu, no dia 10 de Julho, com a transmissão da final do Euro”. Estreada no 90.º aniversário do golpe militar de Gomes da Costa, foca-se no período 1926-1945 e já foi exibida também na RTP3 e na RTP Internacional (o último episódio passa dia 26 de Agosto), estando prevista a sua repetição “mais tarde” na 2, confirmou Teresa Paixão; “é uma hipótese provável” que chegue também à RTP1, diz o seu director de programação Daniel Deusdado, salvaguardando que “este é um programa do ADN da RTP2” – e do seu orçamento, 290 mil euros para seis episódios que se tornariam 11. Os nove actuais e os dois de Os Últimos Dias da PIDE, estreados a 25 de Abril de 2015.
Os últimos oito anos tiveram percalços – além do ordálio da pesquisa em alguns arquivos, Godinho viu a equipa encolher pelas saídas precipitados pelos planos de rescisões voluntárias da RTP com a produção já em curso. Os Últimos Dias da PIDE surgiram nesse momento, pedidos pela RTP2 para o 41.º aniversário da revolução. As entrevistas e a pesquisa para grande parte do projecto geral de contar toda a história da polícia política já estavam feitas e “Os Últimos Dias da PIDE seriam dois dos episódios da série da História da PIDE”, explica o jornalista; "devido às circunstâncias, acabei por estrear o fim da série” primeiro, ri. Ou qualquer coisa como isso – “obviamente há o pós-25 de Abril, as comissões de extinção, o julgamento dos PIDEs, que ainda fará parte de um outro episódio”.
As imagens vêm do Arquivo RTP (o seu valor não está incluído no orçamento), mas também do Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (cujos direitos de exibição condicionam o streaming de alguns episódios no RTP Play, por exemplo), além do Arquivo da PIDE-DGS da Torre do Tombo, Museu da Polícia Judiciária, Biblioteca Nacional e Arquivo Histórico-Social, na Fundação Mário Soares e a estreia da pesquisa, no Arquivo Histórico-Militar, dos processos dos agentes da PIDE julgados no pós-25 de Abril. “A primeira vez que foram consultados oficialmente foi como pedido que fiz para a série”, diz o jornalista da RTP, que ainda aguarda 70% dos processos pedidos, alguns dos quais serão dos “mais importantes” da sua pesquisa.
Agora, espera que a estação continue a “achar que é serviço público apostar neste tipo de programas e nesta série, algo que por paradoxal que pareça nem sempre é um discurso que colhe na RTP”, para explorar o período 1945-74 da PIDE e dar uso ao muito material que já coligiu. Para “cumprir o dever de memória” num país “original” na forma como absorveu discretamente, diz, a maioria daqueles que foram a PIDE.
Agostinho Lourenço é uma das figuras que mais se destaca na série e no que sobre ela se tem dito. Detectou a ligação do fundador da PVDE à Maçonaria, e que a sua iniciação foi subscrita pelo Nobel português Egas Moniz. Qual é a importância, para a narrativa sobre este período, desta descoberta?
Senti-me, em muitos casos, a resgatar um pouco à História aqueles episódios que o jornalismo não pôde ou não quis contar, por causa da censura ou porque estava envolvido no próprio Estado Novo. Achei interessante, à medida que desenvolvi a série, ver a importância que figuras não muito conhecidas tiveram no regime. Talvez a mais inquietante tenha sido mesmo Agostinho Lourenço, que esteve 25 anos à frente da polícia política, que esteve lá quando o regime se estruturou. E que quando saiu da polícia política foi o único dirigente português da Interpol.
Em grande parte, um dos problemas da forma como olhamos para o Estado Novo é o de o olharmos sempre a partir da figura de Salazar, o "Salazarcentrismo". A polícia política foi construída por militares que vieram da I República, da direita republicana, ligados ao sidonismo, e que depois se constituíram como os tenentes da ditadura. Tiveram sempre muita influência, uma rede que não passa só por linhas ideológicas, mas também por redes de amizades e clientelares. Ter percebido que o Agostinho Lourenço, numa determinada fase, tinha sido iniciado na Maçonaria, e que Egas Moniz, que pertencia à direita republicana, mas era um liberal, também estava ligado a esse processo, fez-me pensar em como as linhas com que se teceu o Estado Novo são mais complexas.
Pensamos nos directores da PIDE como sendo homens fiéis ao ditador. Mas houve momentos de fricção e conflito, de tensão, entre Agostinho Lourenço e Oliveira Salazar. E isso inquietou-me. Como é que um homem está 25 anos à frente da polícia se o poder dele não provém directamente da figura do ditador? Que outros poderes fortes existem na sociedade? Foi isso que me levou a investigar essa pista da Maçonaria.
Diz querer desenterrar os “rostos invisíveis por detrás da figura de Salazar”. Que outros rostos são esses?
Esta primeira série dá rosto a pessoas não só ligadas ao regime, mas também à resistência. A memória do Estado Novo está para nós muito mais próxima dos anos 1960, de Humberto Delgado, das lutas estudantis, da Guerra Colonial, do que propriamente dos anos 1930 e 40. É a estranha injustiça da História, que às vezes avança como nevoeiro, tapando aquilo que a memória vai esquecendo. Não a dos historiadores, obviamente, mas a memória comum, da cultura geral.
Achei extraordinário tentar perceber como foi a organização da resistência entre os militares, à volta de figuras como Jaime Morais, ou o tenente Correia, que mostrei na série como um resistente típico do reviralhismo, alguém que vinha do 5 de Outubro e que termina a sua carreira política quando é preso por ter estado quatro anos clandestino, em casa, já em 1937/8. Ou o Sarmento de Beires, um ás da aviação, uma figura que estava por aí nos postais, que as pessoas conheciam como hoje conhecem as celebridades do futebol. E que se opôs ao regime, participou em golpes do período reviralhista, esteve fugido, na clandestinidade, foi preso.
Por outro lado, um dos grandes objectivos da série era não deixar que a PIDE fosse apenas um nome. Em muitos livros e em textos dos jornais, a PIDE é uma espécie de entidade abstracta. “A PIDE entra”, “a PIDE chegou”, “a PIDE apareceu”…, sem rostos. É como se todas figuras – dos agentes, dos inspectores, dos directores – e a maneira como fazem parte da nossa sociedade tivessem sido cobertas por um manto de invisibilidade.
Noutros países que tiveram regimes autoritários coevos as figuras dos seus dirigentes e dos colaboracionistas são amplamente estudadas e escrutinadas…Essa quase amálgama identitária da PIDE é uma singularidade da ditadura portuguesa?
Penso que o caso português é um caso original. Nunca houve processos de colaboracionismo, nem a inquirição política que ainda hoje há em França ou na Alemanha. Obviamente existe um grande estigma em relação à PIDE como entidade abstracta, mas em relação aos nomes concretos, às figuras, isso não aconteceu. Não estou a dizer que devia ter acontecido, mas interessa reflectir por que é que não aconteceu e se deslocou para entidades abstractas ou se centrou na figura de Salazar.
Ainda hoje é muito difícil investigar este período. Tive imensas dificuldades para conseguir consultar os ficheiros de identificação de funcionários da polícia política, tive de ir à Assembleia da República para ter autorização. Sendo que durante o Estado Novo eram funcionários públicos – era aliás algo de que se queixavam, porque o seu nome aparecia em Diário da República quando entravam para a PIDE. Chegou a haver casos de eu pedir entrevistas a agentes da PIDE com livros publicados e que não a quiseram dar, argumentando que a família não quis, ou talvez por medo de revelar a alguns dos seus descendentes um passado de que não se orgulhariam.
Não terá a ver com o poder da imagem, e da televisão?
Talvez. Temos muito boa investigação histórica deste período, muito do que foi tratado na série está escrito, apesar de eu ter feito a minha investigação e de haver algumas coisas inéditas. O que falta é a transição, a mediação entre o lado mais profundo, científico, da investigação histórica e o conhecimento do público em geral. Esse conhecimento precisa de operações intermédias: documentários televisivos, filmes, histórias de banda-desenhada...
É essa a importância de tratar este tema com imagens?
Há todo um dispositivo cultural que é preciso para que o conhecimento do público sobre a História não fique apenas por três ou quatro episódios míticos. Falta-lhe um outro patamar de profundidade e nele a questão da visualidade é interessante. Contar uma história sem imagens é sempre mais difícil quando estamos a falar da grande audiência. Hoje é muito difícil conseguir fazer com que este tipo de programas interesse ao grande público, às mesmas massas que vêem as novelas, por exemplo. É mais complicado hoje do que há 20 anos.
Porquê?
Os media foram-se uniformizando muito à volta do mesmo tipo de programas, do espectáculo televisivo. Fomos criando uma cultura do espectador que gosta de imagens impactantes, habituado a um olhar fragmentado, a ser acedido através de soundbytes; e o espectador do documentário é um espectador que está mais próximo do livro. Não tem apenas a ver com o interesse, tem a ver também com uma cultura que há que inverter.
A série não se inserirá também numa outra cultura, própria da fragmentação temática, que criou espaços para produtos mais autorais, de maior fôlego, na ficção ou no documentário?
Existe um hiato muito grande em relação aos públicos mais exigentes, que vão estando também nos canais especializados e que têm a sua oferta. Mas o serviço público de televisão não pode prescindir da grande audiência, não pode deixar que os seus níveis culturais baixem ao nível do sensacionalismo e do espectáculo. Por isso mesmo o investimento neste tipo de programas não pode ser apenas para um público minoritário, tem de haver um esforço para o aproximar de outro tipo de público. Essa tem de ser uma missão do serviço público.
A questão é que estes modelos, que são os da televisão dominante, exigem investimento a longo prazo em pessoas e meios e quando se investe numa determinada linha, não se investe noutra. Um dos grandes problemas de fazer documentários deste género é que não há uma estrutura que agilize a produção para poderem ser mais frequentes, para se poderem fazer até com menos peso orçamental. As televisões nos últimos 20 anos têm investido muito na televisão em directo, nos programas de estúdio, e menos noutro tipo de discurso. Seria errado pensar que é uma simples questão de opção para quem tem de decidir se fazemos mais notícias breves ou mais reportagens longas. Não é assim tão fácil. Infelizmente.
Dois detalhes diferenciadores da série são o de colorir de algumas figuras, tratando as imagens documentais com menos reverência, e o de abrir episódios com Abandono, de Amália. Com que objectivo?
Tive dúvidas sobre se colorir as imagens não iria enfraquecer o lado forte e documental que muitas daquelas fotografias tinham. Mas a série tem como grande base as fotografias e não as imagens filmadas – não havia muitas e são muito caras – e os efeitos para destacar [as figuras nas fotos] são limitados. A técnica [da colorização] é muito utilizada.
Sobre Amália, decidi que não ia buscar demasiados ícones estereotipados daquele período – a não ser que fizessem parte da história. Excepto no Fado do Abandono, que mais tarde se chamou o Fado de Peniche, porque está ligado a um episódio – um dos autores, o músico Alain Oulman, foi preso pela PIDE [o poema é de David Mourão-Ferreira]. A própria Amália e o fado em si representam um pouco a linha que eu queria para a série. Amália foi vista durante muitos anos como uma figura ligada ao antigo regime e que cantou um dos mais belos fados da resistência. Os extremos tocam-se.
As polícias políticas que antecedem a PIDE, criada por Salazar em 1945, são sempre fruto da mesma cultura ou há nuances?
As várias encarnações reflectem as lutas internas do regime. Tinha a ver com quem mandava na altura no regime e como a partir daí controlava a polícia; e esse controlo passava mais vezes por uma mudança semântica do que de conteúdo.
Houve uma mudança de conteúdo importante para o regime quando o primeiro governo de Salazar nomeia Albino dos Reis para ministro do Interior, e ele tenta suavizar as polícias. Tenta fazer uma polícia que saia um pouco da linha que já estava instituída, a PDPS [Polícia de Defesa Politica e Social], que só existe durante seis meses mas que é a única que é dirigida por um civil, o juiz Vieira de Castro. Penso que faz parte da estratégia de Salazar de negociar com as várias facções do regime. Abriu ligeiramente, integrou a direita republicana que era forte, mas logo que conseguiu a aprovação da Constituição do Estado Novo em plebiscito a coisa voltou para trás. Albino dos Reis é substituído por um militar e as duas polícias são revertidas numa outra polícia, com uma outra estrutura que vai ser definidora do regime, a PVDE, mais homogénea, concentrada, com muito mais poderes – de gerir as prisões, a emigração. E com uma tutela muito forte sobre o regime, um braço longo que se estende efectivamente por todo o território e não apenas pelo Porto e Lisboa.
A meio deste projecto, qual acha que é a importância sociocultural da PIDE e da sua cultura, informada pelo relativo desconhecimento sobre os seus actores, para o Portugal actual?
A cultura do medo e da delação está muito ligada à maneira de fazer política em Portugal. Faz-se muita política sob o tom da ameaça, da superioridade, da imposição. Isso ainda se mantém e teve como consequência também algo que vem dos tempos do Estado Novo: a separação da política e do resto. O povo integrou essa máxima de que a política é algo de perverso, uma forma de desvirtuamento pessoal.
A polícia política aproveitou algo que é estruturante da sociedade portuguesa, a questão clientelar – somos um país de clientelas, de cunhas, de amigos. Este foi um dos grandes trunfos da polícia política, criando uma rede de informadores, que é também uma rede potlach, de troca de favores. Salazar era um mestre do clientelismo e dos favores, de saber negociar. São coisas que ficaram vincadas naqueles anos, e penso que os episódios o mostram, que servem também para ler a nossa sociedade. São linhas de genealogia, talvez com algumas mudanças, mas que se mantêm activas.
Notícia corrigida: Onde se lia erradamente o nome de Sarmento Medeiros está agora correctamente grafado Sarmento de Beires