Morreu André Jorge, o editor que era a Cotovia

Responsável pela edição e pela divulgação de poesia e de textos de teatro, mas também de ensaio e ficção, o seu nome confundia-se com o da sua editora.

André Jorge, fotografado em 2008
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André Jorge, fotografado em 2008 Daniel Rocha
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André Jorge em Setembro de 2011 CORTESIA FERNANDA MIRA BARROS
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André Jorge na Casa da Mareta, em Pedralva CORTESIA FERNANDA MIRA BARROS

André Jorge, o editor e fundador da Cotovia que publicou centenas de obras e se destacou na divulgação da poesia e dos textos dramatúrgicos, morreu esta sexta-feira aos 71 anos, em Lisboa, de linfoma. 

A Cotovia foi fundada em 1988 por  André Fernandes Jorge e pelo seu irmão, o poeta João Miguel Fernandes Jorge. O poeta acabaria por se desligar do negócio e a Cotovia continuou, destacando-se pela sua aposta nas áreas do ensaio, da ficção, da poesia e do teatro, publicando muitos autores das diferentes latitudes da lusofonia e confundindo-se com a figura de André Jorge.

"Vai fazer muita falta à edição portuguesa", lamenta Manuel Rosa, seu amigo e editor de poesia e nome forte da Assírio & Alvim, "sobretudo num tempo em que a edição se industrializou muito". Há quase uma década, a Cotovia, a Assírio & Alvim e a Relógio D’Água juntaram-se na criação de uma colecção conjunta, a BI (Biblioteca Independente), projecto entretanto encerrado. "Alguém que faz um trabalho tão cuidado e de grande qualidade" como André Jorge, diz ainda ao PÚBLICO Manuel Rosa, "vai mesmo fazer falta". 

Numa nota enviada esta tarde às redacções, o ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, também já lamentou a morte do editor e fundador da Cotovia, reconhecendo o seu "legado literário, demonstrado no valor do catálogo que publicou ao longo das últimas décadas".

Em entrevista ao PÚBLICO em 2008, André Jorge assumia que "quase" só publicava aquilo de que gostava e descrevia-se, sobre a difícil coabitação da sua personalidade com o poder, assim: "Sou feito do avesso." Francisco Vale, o editor da Relógio D'Água que se aproximou de André Jorge sobretudo nos últimos anos, com o lançamento da BI, sublinha exactamente a sua intransigência editorial: "A Cotovia foi um dos projectos mais exigentes e mais interessantes que Portugal teve nestas décadas mais recentes. E o André Jorge, como dizia a rir-se, era o único editor cujas dificuldades resultavam das exigências que ele próprio punha no seu catálogo – não me lembro de facto de ver no catálogo dele nenhuma concessão à facilidade ou às vendas." Esse rigor, diz, manteve-se até ao fim: "O último autor que editou é um escritor brasileiro recente [Marcelo Mirisola] para um público reduzido, mas de grande qualidade: foi sempre esse o lema dele", diz ao PÚBLICO.

Em 2002, Frederico Lourenço enviou a André Jorge, que não conhecia, o original do seu romance Pode um Desejo Imenso, que viria a ser o primeiro de uma trilogia homónima e receberia o Prémio Pen Clube para primeira obra. O editor gostou e conheceram-se no início de 2002, com o livro a ser editado nesse mesmo ano. “Agora, já são 23 os livros que publiquei na Cotovia”, diz o professor, ensaísta, tradutor e escritor. Lourenço elogia em André Jorge “a disponibilidade para publicar coisas que sabia que não iam vender, ensaios e textos mais exigentes": "Não recuava perante o risco. Vivia muito o idealismo dos livros." Em suma, via nele e no seu legado “altruísmo e crença na importância da literatura”.

A sua tradução premiada, em verso e do grego, da Odisseia, aconteceria logo no ano seguinte, também na Cotovia, e Frederico Lourenço atirar-se-ia à Ilíada em 2005 – dois marcos no sector, projectos que apresentou a André Jorge e que ele aceitou de imediato com “uma ideia fantástica”, desenvolvida em volta de um almoço com a mulher Fernanda Mira Barros, de fazer uma edição em capa dura, “uma edição linda”, recorda Lourenço. A primeira edição, de dois mil exemplares, esgotou em 15 dias, a segunda, de três mil, num mês. Foram apostas arriscadas, mas ganhas, que originaram ainda a versão da Odisseia adaptada para jovens – “de todos os livros que já publiquei na Cotovia, foi o que vendeu mais”, aponta.

O dramaturgo José Maria Vieira Mendes editou duas obras com a Cotovia e está a entregar mais duas, além das várias traduções que assinou para a editora. “É praticamente a única que edita teatro com regularidade”, lamenta, elogiando a colecção que a Cotovia mantém em parceria com os Artistas Unidos, por exemplo. Além de lá ter trabalhado dois anos (entre 1998 e 2000, estima), é sobretudo como autor que recorda André Jorge – “Era um editor muito especial, costuma dizer-se que era daqueles editores que já não existem”. Lembra a sua abertura ao diálogo, o seu prazer em falar com os autores, mas também como “era muito casmurro” nessas negociações. André Jorge admitiu, na entrevista de há oito anos ao PÚBLICO, ter deixado passar alguns nomes, como José Eduardo Agualusa ou Gonçalo M. Tavares, que lhe foram parar às mãos e que afinal gostaria de ter editado. E aquele que gostaria de editar, mas que "certamente não me queria como editor, [era] o Lobo Antunes" -  provavelmente "dava asneira" pelos feitios de ambos.

“Era também especial por ser muito casmurro, porque não quis ceder à violência que se tornou o mundo editorial, com muitos grupos e grandes livrarias” a entrarem no mercado português e, inevitavelmente, a mudá-lo nos últimos anos. “Não alterou o seu percurso e a sua maneira de fazer livros. Não é algo que traga muito sucesso comercial, mas preservou um certo nicho de autores e de leitores que gostam de trabalhar assim”, sublinha Vieira Mendes, elogiando o seu antigo editor “eticamente muito rígido”. O editor, em 2008, descrevia o mercado sem rodeios. "Há uma vulgarização da leitura e dos livros. Edita-se e vende-se mais, mas não estou a falar de literatura. Não concordo que estejam a fazer leitores. Estão a fazer aqueles leitores, ficam feitos, não têm nada a ver connosco". 

A morte de André Jorge coloca questões não só sobre como se desenhará o futuro da Cotovia, que recupera, seguindo José Maria Vieira Mendes, de um período financeiramente mais difícil, mas também sobre o sector e o lugar que ocupa nele. “Haverá sempre um espaço para uma espécie de edição de resistência”, diz o autor, lembrando “uma série de pequenas editoras”, como a Dois Dias, sobretudo ligadas à poesia, "muito marcadas por este tipo de trabalho” que as antecedeu e que “oferecem alternativas”. Frederico Lourenço pede: “O meu desejo é que a Cotovia pudesse continuar essa qualidade única no panorama editorial português e continuar na linha do André Jorge, nessa marca André Jorge”.  

Francisco Vale, que há cerca de seis meses esteve perto de adquirir a Cotovia, ressalva que o carácter fortemente pessoal do catálogo da editora – "Todos os livros da Cotovia tiveram a marca do André Jorge, e em certa medida também da Fernanda [Mira Barros], que foi associada da editora e lançou a colecção Livros da Raposa, com uma orientação um pouco diferente"  não impede que o projecto sobreviva à morte de André Jorge. "É um catálogo que eu respeito bastante e claro que irei acompanhar os próximos desenvolvimentos: não gostaria que se perdesse o trabalho que ele fez, tal como não gostaria que mais tarde se viesse a perder o meu", afirma, destacando que a Cotovia é particularmente insubstituível nos clássicos gregos e latinos. "Nenhuma editora tem nada que se compare ao espólio da Cotovia nessa área", insiste.

Nos últimos tempos, conta ainda o editor da Relógio D'Água, André Jorge "tinha consciência de que já não tinha as energias necessárias para continuar o projecto"; os constrangimentos da doença afectaram a regularidade editorial da Cotovia, o que terá provocado o afastamento de alguns escritores umbilicalmente ligados à casa, e que entretanto passaram a publicar noutras editoras. Um afastamento que, diz Fernando Vale, "lhe foi muito doloroso", dada "a relação de estima e de respeito que tinha com os autores, que sempre defendeu com unhas e dentes".

O encenador Jorge Silva Melo teve "a sorte" de ser um desses autores muito da casa. A sua relação com a Cotovia, lembra ao PÚBLICO, começou em 1995, por causa de António, um Rapaz de Lisboa, a peça a todos os títulos fundadora que estreou a 18 de Setembro desse ano nos Encontros Acarte: "Ele quis editar a peça e eu fiquei um autor da casa." Era, diz "muito discreto, mas ao mesmo tempo muito teimoso e obstinado – e muito fiel aos seus poucos autores. Gostava de ter cinco, seis, sete ou oito autores em que tinha plena confiança e eu fui um deles, tal como o [A.M.] Pires Cabral, o Ruy Duarte Carvalho e a Teresa Veiga." Em comum, o facto de nunca terem estado perto do mainstream editorial, lugar em que, confirma Silva Melo, "André Jorge não tinha interesse em colocar-se": "Era um editor não diria terrivelmente marginal, mas muito insólito. Único."

A partir desses autores, e dos livros sobre os quais conversava com eles, chegou a outros, nalguns casos rotundos fracassos de vendas: Doris Lessing, Natalia Ginzburg, Roberto Calasso. E, no caso de Silva Melo, chegou também a uma colecção, os Livrinhos de Teatro, cuja distribuição a editora passou a assegurar a partir do terceiro volume, cabendo a política de autores e a produção aos Artistas Unidos. Mas entre 2002 e 2016, admite o encenador, "muita água correu no negócio dos livros e a coisa começou a apertar muito". "Da última vez que falei com ele, há três semanas, estava muito bem-disposto a preparar a presença na Festa do Livro de Belém e na Feira do Livro do Teatro do D. Maria II, queria saber o que tínhamos para lá levar. É a saída dos editores agora, ir vender os livros às feiras, como alfaces."  

Para Silva Melo, a acção editorial da Cotovia foi evoluindo com o tempo: dos primeiros anos marcados pelas traduções de nomes fundamentais da poesia como Paul Celan ou Henri Michaux à fase em que investiu na publicação das obras completas de Brecht ou Goldoni, contribuindo para a edificação de uma biblioteca essencial do teatro, ao "caso ímpar" do Curso Breve de Literatura Brasileira dirigido por Abel Barros Baptista e, claro, os clássicos. Agora que André Jorge, esse editor único, desaparece, o encenador acredita que "alguém há-de tomar conta" da Cotovia, porque nem o seu catálogo nem o lugar incomparavelmente "estranho e pessoal" que ocupou no meio editorial português "se podem perder": "É pelo menos isso que eu espero, gosto muito daquele bichinho."

Abel Barros Baptista, que com ele viveu essa aventura editorial, provavelmente "irrepetível nos dias de hoje", que foram os 14 volumes, editados em apenas dois anos, do Curso Breve de Literatura Brasileira, recorda-o também como uma espécie de editor puro, que considera de resto estar também em vias de extinção. "O André editava os livros quando gostava deles. Sempre houve editores que – legitimamente, porque a edição é um negócio e como tal visa o lucro – usaram argumentos plausíveis para publicar livros de que não gostavam. O André foi intransigente nisso. Quando gostava publicava; quando não gostava recusava", explica o escritor e professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa, que se especializou em literatura brasileira.

Essa política de gosto não o impediu de publicar, e muito menos de revelar novos autores. Barros Baptista cita os casos paradigmáticos de Frederico Lourenço, mas também de Filomena Marona Beja e, sobretudo, de Teresa Veiga, que apesar de ter publicado um primeiro livro ainda antes de chegar à Cotovia se tornou reconhecida com O Último Amante. Mas a intransigência de André Jorge na defesa dos livros pelos livros também esteve na origem do grafismo espartano da editora, cujas capas não se confundiam com nenhumas outras: uma barra de uma cor, outra barra de outra cor, o nome do autor em cima, o nome da obra em baixo. "Tinham apenas a informação fundamental que o leitor tinha de ter e mais nenhuma, o que pressupunha um leitor habituado à Cotovia. Creio que essa é a imagem mais fiel daquilo que o André era enquanto editor."

Produzir de raiz uma colecção com "um editor que fazia cada livro como se a vida dele dependesse daquilo, como se se tratasse de um destino pessoal", foi um privilégio que Abel Barros Baptista, também um autor da Cotovia, recorda com a convicção de ter participado "num empreendimento gigantesco", para o qual André Jorge lhe deu "carta branca" e relativamente ao qual nunca procurou, e muito menos impôs, "soluções mais económicas ou mais práticas": "Só as negociações dos direitos de autor foram um trabalho imenso. Acabámos por não conseguir, por dificuldades intransponíveis, publicar o Guimarães Rosa e o Manuel Bandeira, mas mesmo assim foram 14 volumes com notas, prefácios, indicações bibliográficas, uma revisão cuidadosa – talvez a coisa mais importante que fiz em toda a minha vida."

A Cotovia desdobrou-se não só na edição literária, com a publicação de uma média de cerca de 40 títulos por ano, mas também na venda directa, com a sua livraria, entre o Chiado e o Bairro Alto lisboeta. Às quatro colecções centrais (Ensaio, Ficção, Poesia, Teatro) foram-se juntando, ao longo dos anos, projectos como o Curso Breve de Literatura Brasileira ou a série Clássicos Gregos e Latinos e, em colaboração com a companhia de teatro Artistas Unidos, de Jorge Silva Melo, os Livrinhos de Teatro. 

"Era um dos homens mais importantes da edição em Portugal", lê-se na página de Facebook da editora após o óbito de André Jorge, "cujos critérios nunca se vergaram a modas ou lógicas de lucro" e que "celebrou a liberdade de editar o que sempre 'lhe deu na gana', como também dizia". "Era um apaixonado por gatos, e hoje, a sua Maravilhas, a gata da livraria, está soturna como o dia", descreve a editora.

O escritor Pedro Paixão considera que André Jorge era o seu "antigo e sempre editor". Numa mensagem escrita enviada ao PÚBLICO, recorda-o como "um Senhor, de um bom gosto superlativo, que também publicava livros": "Não me lembro de falarmos de literatura mas nunca esquecerei as sardinhas no forno, a fineza do trato, a coragem em continuar quando não há saída. O seu mais amado autor era Camilo Castelo Branco"  André Jorge admite-o: "quem me pôs a ler prosa, porque sou um bocado preguiçoso, foi de facto o Camilo, que me acompanhou, numa série de volumes quando fui fazer o serviço militar para Angola. Levei uma biblioteca só Camilo", disse ao PÚBLICO em 2008. "Facilmente aceitei quando me dizia que os meus livros não lhe agradavam", retoma Pedro Paixão. "O André é uma figura traçada a preto e branco numa paisagem de brumas e fumos. Repito o que disse à [jornalista e escritora] Tereza Coelho há uns 20 anos: se não fosse o meu editor eu não publicava nada". 

Entre os autores da Cotovia contam-se nomes como os dos portugueses A.M. Pires Cabral, Frederico Lourenço, Teresa Veiga, Daniel Jonas, Luísa Costa Gomes, Paulo José Miranda, Jacinto Lucas Pires ou António Pinto Ribeiro, mas também o angolano Ruy Duarte de Carvalho e os brasileiros André Sant'Anna, Bernardo Carvalho, Carlito Azevedo ou Marcelo Mirisola. Foi na Cotovia, também, que saiu um dos poucos livros do mais recente Prémio Camões, Raduan Nassar com edição em Portugal, Menina a Caminho e outros contos (2000) – poucos anos antes, a Relógio D'Água publicara os romances Um Copo de Cólera e Lavoura Arcaica. André Jorge recebeu em 2012 o Prémio Ler/Booktailors de melhor editor.

Fernanda Mira Barros escreveu na tarde desta sexta-feira no Facebook que André Jorge deixou expresso que não haveria cerimónia fúnebre ou velório.

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