Indústria farmacêutica está a matar a galinha dos ovos de ouro
Os novos medicamentos nem sempre se traduzem em ganhos efectivos para os doentes, defende o presidente do conselho de administração do IPO de Lisboa, Francisco Ramos. Os gastos estão a crescer a um ritmo significativo. Em 2015, só um tratamento de um doente custou 400 mil euros.
Um jornal escrevia recentemente que há 26 novos medicamentos para o cancro à espera de comparticipação estatal, alguns há anos. Por que é que tão complicado deixar que cheguem aos doentes?
Desses 26, provavelmente algum será inovador, mas quase posso apostar que boa parte deles serão mais do mesmo, eventualmente com alguma modificação de administração. Os medicamentos são um grande problema, representam cerca de um terço da despesa do IPO. Já no ano passado aumentámos a despesa em praticamente 20%. Há um conjunto de novos medicamentos muitos caros que nalguns casos se traduzem em ganhos efectivos para as pessoas, noutros casos nem tanto.
Mas como é que se distingue a inovação da mera novidade?
Por exemplo, um dos medicamentos mais usados, que é altamente eficaz e foi muito importante para mudar o curso do tratamento do cancro da mama, o trastuzumab [substância activa], está a chegar ao fim da sua protecção de patente. No entretanto, a empresa passou a comercializar uma nova forma de administração, o trastuzumab subcutâneo. Só com isso arranjou uma protecção de patente por mais não sei quantos anos, pode manter os preços lá em cima. Vai haver casos destes em breve nos tratamentos do VIH.
Como é que se combate um fenómeno destes?
É uma questão de organização de quem está do lado da administração de saúde. É preciso informação e alguma coragem, e, se for preciso, ir baixando preços administrativamente. Mas difícil é distinguir as vantagens, na oncologia, entre um medicamento que em média prolonga a vida por mais seis meses e outro por mais um mês e meio. Temos que trabalhar muito para sermos capazes de tomar decisões informadas e acertadas.
Enquanto não há comparticipação, a Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed) vai concedendo autorizações de utilização excepcional.
Aí, acho francamente que valia a pena mexer. Tenho muitas dúvidas de que não haja interesse das próprias empresas em atrasar [este processo], porque enquanto não há comparticipação, as empresas estão a vender ao preço a que pediram e, face à pressão dos media, vendem antes da aprovação. Portanto, não são tão prejudicadas. Acho que valia a pena encontrar uma forma de pôr pressão também sobre as empresas e a utilização dos medicamentos ser garantida a preço zero enquanto não há decisão de comparticipação. Há até um mecanismo já previsto de fornecimento gratuito por motivos de compaixão.
No caso dos medicamentos para a hepatite C, o processo demorou um ano. Não é demais?
Prolongou-se por um ano, mas o preço passou de 48 mil euros para cerca de 7500, tanto quanto sei, porque um dos problemas é a confidencialidade destes acordos. Achamos naturalíssimo o que aconteceu no caso da hepatite C – em que um doente foi a uma comissão parlamentar dizer “Senhor ministro, não me deixe morrer” – e não nos passa pela cabeça que um doente apareça numa reunião de dirigentes da indústria e diga "Senhor presidente não me deixe morrer, ponha lá o medicamento ao preço que o meu país pode pagar”. A pressão é sempre sobre as autoridades públicas. A indústria tem um papel muito importante na descoberta de novos medicamentos. Mas está claramente a exagerar e sobretudo quase que a utilizar uma posição abusiva de mercado para reter todos os benefícios dessa inovação, em vez de os repartir. Será sempre uma luta desigual, mas há uma falta de visão estratégica da própria indústria, que estará a matar a galinha dos ovos de ouro que lhes permite o desenvolvimento através dos sistemas de protecção social [dos países].
Mas o IPO é, dizem, uma das unidades mais renitentes à introdução da inovação farmacêutica…
No IPO há uma prática de utilizar o que é realmente importante. Quem decide são médicos e farmacêuticos. Não há memória de um medicamento prescrito por médicos e comissão farmacêutica que não tenha sido aprovado. O nosso recorde foi em Agosto passado, quando um medicamento para um doente (que sofria de cancro do pulmão) custou 400 mil euros .
Com um orçamento menor, como vai ser possível pagar mais pela inovação?
Se a despesa com medicamentos continuar a crescer a este ritmo será muito difícil, mas isto vai depender fundamentalmente do cumprimento do acordo com a indústria farmacêutica. Tenho esperança de que o protocolo [em que a indústria se compromete devolver o que ficar acima do limite definido para a despesa anual] seja cumprido. O IPO recebeu ainda no ano passado cerca de seis milhões. A despesa global com medicamentos em Portugal não pode ultrapassar os dois mil milhões. No ano passado ultrapassou, mas o protocolo tem sido cumprido.