Mais depressões são tratadas com electrochoques
O “velho” tratamento está a ser mais utilizado, pelo menos nos hospitais de Porto, Loures e Coimbra. “Há mais uso, o que não quer dizer que haja abuso”, diz director do Programa Nacional para a Saúde Mental.
A electroconvulsivoterapia — ou, usando a designação mais popular, os “electrochoques” — está a ser mais usada para tratar depressões graves. O sector privado tem vindo a disponibilizar mais este tratamento — conhecido também pela sigla ECT — e, mesmo no sector público, têm sido criadas nos últimos anos mais unidades especializadas, diz Álvaro Carvalho, director do Programa Nacional para a Saúde Mental, da Direcção-Geral da Saúde. “Há mais uso, o que não quer dizer que haja abuso”, ressalva.
Para além disso, “várias são as instituições que andam a renovar as suas máquinas de ECT”, afirma Jorge Mota, responsável pela unidade de electroconvulsivoterapia do Hospital de Magalhães Lemos, no Porto. Aqui passou-se de 252 tratamentos de ECT, em 2006, para mais de mil por ano, desde 2013. E só não se fazem mais, garante, porque o número de camas “é limitado”.
Metade dos doentes tratados nesta unidade do Porto (cada doente implica várias sessões) tem depressões, explica o médico que é também vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Electroconvulsivoterapia, e que está a preparar um livro sobre o assunto. Os restantes têm esquizofrenia.
No Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, a unidade de ECT foi criada em 2014. São realizadas cerca de 200 sessões por ano. “Tem havido um aumento progressivo”, relata Maria João Heitor, directora do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental. A maioria dos doentes tratados têm depressões.
O procedimento de ECT é efectuado sob anestesia geral. Não é uma terapêutica de primeira linha, como sublinha Maria João Heitor, está indicado para casos muito específicos, como se verá adiante. Na região temporal da cabeça é aplicado um estímulo eléctrico, com uma carga suficiente para produzir uma convulsão de curta duração.
De Coimbra, onde, no ano passado, se realizaram 100 sessões de ECT (a nove doentes, oito deles com depressão major) chega esta resposta, por email, às perguntas do PÚBLICO : “A tendência sentida nos últimos anos é de um claro aumento da utilização da ECT como terapêutica eficaz, rápida (em média, após quatro a seis sessões já são visíveis melhorias sintomáticas significativas) e segura para algumas doenças psiquiátricas graves.”
Joana Andrade, a médica psiquiatra que coordena a unidade de ECT do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), explica ainda que outra técnica de estimulação do cérebro, “a estimulação magnética transcraniana repetitiva”, está igualmente a ser usada, fruto de uma colaboração do Centro de Responsabilidade Integrada de Psiquiatria do CHUC com a Universidade do Minho e Universidade de Harvard (“as patologias em que foi objectivada maior eficácia terapêutica foram a depressão major e a dor neuropática”, conta).
Esta técnica de estimulação magnética (baseada "na indução de campos magnéticos no córtex por uma bobina aplicada directamente na cabeça", com menos energia a ser transferida para o cérebro do que na ECT) faz parte quer de protocolos de tratamento (para a depressão, por exemplo), afirma Joana Andrade, quer de protocolos experimentais (para doentes com Perturbação Obsessiva Compulsiva, por exemplo). "A diferença é que para uns o nível de evidência favorável permite já a sua recomendação formal para tratamento, e nos outros esta evidência ainda está a ser construída."
Má reputação
No Hospital de Santa Maria, em Lisboa, o número de tratamentos tem-se mantido estável, segundo o gabinete de comunicação: "O número anual de sessões é variável mas, geralmente, em média, são efectuados entre 150 e 200 tratamentos. Estas sessões dizem respeito ao tratamento de doentes com depressão, mas não só. Também são efectuados tratamentos a doentes com psicose, catatonia ou doença bipolar. Em média, um doente com depressão grave necessita de oito sessões."
O PÚBLICO procurou dados noutros hospitais, nomeadamente no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, que não responderam em tempo útil. Mas olhando para as respostas dos especialistas contactados, a tendência observada noutros países parece existir em Portugal: o “velhinho” tratamento está a ver melhorar a sua reputação.
“Os abusos nos hospitais psiquiátricos nos anos 70, o uso dos electrochoques como medida coerciva, por exemplo, levaram muitos colegas meus, mais velhos, a contestá-los”, diz também Álvaro Carvalho. Uma nova geração de médicos estará hoje mais à vontade com estes tratamentos, afastadas que estão as “reacções emotivas” que os antigos exageros provocaram.
Mais: se viu o filme Voando Sobre Um Ninho de Cucos, de Milos Forman, com o jovem Jack Nicholson (interpretando a personagem Randall McMurphy) a ser submetido num cubículo com uma maca a um tratamento de electrochoques, a imagem dele a estrebuchar de dor, agarrado por vários enfermeiros, o rosto rubro com as veias a latejar, ter-lhe-á ficado gravada na memória. Contudo, a electroconvulsivoterapia que hoje se faz está longe de ser isso, garantem os médicos.
Aliás, segundo explica o norte-americano Francis Mark Mondimore, no livro Perturbação Bipolar (Climepsi), sendo um filme de 1975, o Voando Sobre Um Ninho de Cucos retratou a ECT tal como ela “se fazia por volta de 1945, o que não ajudou”.
“Houve uma altura, com o movimento da antipsiquiatria, que a ECT caiu em maior desuso", diz Maria João Heitor. "Actualmente, existem normas orientadoras, baseadas na evidência científica, que suportam e fundamentam a sua utilização de uma forma segura e eficaz."
Para idosos e grávidas
Não é que os receios se tenham dissipado totalmente. A imprensa dos EUA continua a ser palco de um intenso debate entre os defensores e os detractores dos electrochoques (sobretudo numa altura em que a Food and Drug Administration pondera reclassificar o grau de risco dos aparelhos usados em ECT para tratamento de episódios graves de depressão em adultos, da classe III, nível máximo de risco, para a II). Nos jornais, há doentes que relatam experiências de melhoras sem paralelo e outros que se queixam de ter perdido memórias da sua vida, para sempre.
A propósito destes relatos a Associação Americana de Psiquiatria diz, na sua página na Internet, que os riscos devem ser sempre contrabalançados pelas “consequências de um tratamento ineficaz de distúrbios psiquiátricos graves”. É que, sublinha, quem é encaminhado para ECT está, muitas vezes, em risco de vida.
Álvaro Carvalho nota que estamos sempre a falar de um tratamento para casos excepcionais. Está indicado, por exemplo, “para depressões muito graves, com um elevado risco de suicídio”, resistentes aos medicamentos; para grávidas com depressão muito grave; e, “nalguns tratados, vem também a indicação para a anorexia nervosa muito grave e para algumas formas catatónicas de esquizofrenia”.
“Frequentemente, as pessoas ficam surpreendidas quando lhes é explicado que é um tratamento mais seguro do que a medicação nas grávidas e nos idosos com patologia cardíaca e com polimedicação”, diz Maria João Heitor.
“Paradoxalmente", prossegue a médica, "quanto mais grave a depressão, melhor a eficácia do tratamento". Doentes com depressão grave ou depressão psicótica "têm taxas de recuperação de 80-90%”, contra 30% com antidepressivos.
Ainda assim, e apesar da sua eficácia, “se não for mantida terapêutica profilática (ECT ou medicação), as recaídas são extremamente frequentes”, acrescenta Maria João Heitor.
Certo é que a ECT parece estar a ser "reabilitada". O que, para Jorge Mota, deve-se essencialmente a estes factores: “aumento de utentes nos hospitais psiquiátricos; rapidez de recuperação com a ECT, comparando com os psicofármacos; melhoria clínica sentida, em muitos casos, superior à conseguida com os psicofármacos, sobretudo nos doentes com resistência aos medicamentos”. Doentes que, nota, não sentiam melhoria nenhuma antes de se submeterem à ECT.
“Podemos agora, corrigidos alguns erros na antiga prática de ECT, estar a assistir ao regresso aos níveis de utilização antigos”, acredita.
Como funciona?
Hoje as boas práticas mandam que o doente seja anestesiado. “Uma equipa de enfermagem acolhe-o, sossegando a sua ansiedade e satisfazendo as suas dúvidas, no caso de doentes a iniciar tratamento”, explica Jorge Mota. Depois, é vigiado durante todo o procedimento.
“Usamos [no Hospital de Magalhães Lemos] uma máquina de corrente constante da MECTA (Monitored Electro Convulsive Therapy), uma spECTrum 5000Q, que funciona por micro-impulsos, com controle dos quatro parâmetros do impulso eléctrico (corrente, duração do pulso, ciclo, e duração total).”
É feita uma administração de breves correntes eléctricas, na cabeça, que estimulam o cérebro e causam uma resposta muscular. “O estímulo é aplicado tanto uni como bilateralmente, com doses duas vezes e meia (bilaterais) ou seis vezes (unilaterais) superiores ao limiar convulsivante medido na primeira sessão de tratamentos”, prossegue o médico.
Cada doente faz tratamento três vezes por semana, num total entre seis a 12 sessões. E quando é necessário prevenir recaídas, é colocado em programas de manutenção. “Pela investigação efectuada na nossa unidade e publicada no Journal of ECT, revista de referência na área, [as manutenções] permitem reduzir o número e duração dos reinternamentos.”
Enjoos, confusão, dores de cabeça, arritmias, perdas temporárias de memória estão entre os efeitos secundários mais comuns.