Os mas

Os mas são as nossas reticências comuns. São o que somos, sem nunca o ser, e são o que não somos, fingindo sê-lo.

Os mas são a neutralidade que pretendemos ter e não temos, porque ninguém é neutro e a neutralidade é, em última análise, a negação da nossa humanidade e da nossa identidade.

Os mas são a brandura dos costumes, que alardeamos ter e não temos: atente-se, por exemplo, nesse esplendoroso circo de crueldade, mesquinhez e aviltamento gratuito, em que se converteram as redes sociais.

Os mas são essa estafada “tolerância”, que proclamamos ter e não temos, porque o que temos, isso sim, é indiferença: a indiferença da distância, a indiferença do “cada um vive como quer, desde que seja longe de mim e não me incomode”.

Que não me incomode com o cheiro da sua comida, o aspecto do seu vestuário, a cor da sua pele. Que não me incomode com a sua sujidade, a sua demência, a sua mão estendida. Desde que não me incomode, enfim, com o incómodo da sua existência.

Os mas são o respeito que nos orgulhamos de ter e não temos, quando falamos dos “conguitos”, dos “chamuças”, das “gajas” ou do “putedo”. E não há problema, não é? Porque, bem vistas as coisas, até colocamos um certo carinho no uso das ditas expressões e até as utilizamos com bonomia e boa-disposição!

Os mas são a “aceitação” que nos gabamos de praticar e não praticamos, porque uma coisa são “os outros e as suas vidas”, outra coisa, e bem diferente, é entrarem-nos “as desgraças” pelas portas adentro: a desgraça do namorado preto, a desgraça da filha lésbica, ou a desgraça dos vizinhos monhés. E note-se que, afinal, até nem é por nós, mas... e os outros? O que é que os outros haveriam de dizer?

Os mas são o cosmopolitismo com que nos ataviamos e que não temos, porque continuamos, quais comadres de aldeia, a controlar as conversas, as entradas, as saídas, os namoros e os metafóricos comprimentos das saias.

Os mas são o desenvolvimento que relatamos ter e não temos, porque continuamos periféricos e pequenos (e não me refiro, obviamente, à geografia), com uma educação formalmente pobre e difusa, com um paupérrimo acesso à cultura e com uma persistente e bem-nutrida (porque conveniente) confusão entre “o que temos” – os carros topo de gama e as roupas com logotipo – e o “como vivemos” – o bem-estar e a qualidade de vida.

Os mas são a solidariedade que afirmamos ter e não temos, porque não nos ensinam a empatia e o altruísmo, mas o egoísmo e a competição e, por isso, viramos a cara, encolhemos os ombros e seguimos apressados, em direcção à meta, onde nos dizem morar o sucesso.

Os mas são a liberdade que presumimos ter e não temos, porque calamos (e nos calam) e porque aceitamos, baixando a cabeça, sempre atentos e venerandos.

Os mas são o racista que eu nunca fui, que ideia! Mas...o que eu não quero são os ciganos aqui no meu prédio!

Os mas são o preconceito que eu não tenho, nem pensar! Mas... o que eu não quero é que o meu filho brinque com bonecas, não vá o rapaz acabar por dar em “paneleiro!”.

Os mas são o machista, que eu também não sou, que disparate! Mas... o que eu não quero é que a minha mulher ande aí, pela rua, vestida como uma “galdéria!”.

Os mas são a cobardia que eu também não tenho, olha que coisa! Mas... o melhor é ficar calado, porque o que eu não quero é que me chateiem e, para problemas, já bem me basta a vida!

Os mas são as nossas reticências comuns. São o que somos, sem nunca o ser, e são o que não somos, fingindo sê-lo.

São o medo, o silêncio e a mordaça com que, docilmente, atamos as nossas próprias queixadas.

São a subserviência e a submissão. São a desistência e o baixar os braços. São o encolher de ombros. São a ignorância enfatuada e presunçosa.

E são, sobretudo, o perigo, porque, como sempre nos ensina a História, os mas são o mais fértil dos terrenos para a manipulação e para o ódio.

O ódio que humilha, destrói e mata. O ódio ignorante, indiferente e desapiedado.

O ódio. Sem mas...

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