Já se sabe hoje como será Amanhã
Esta ossatura de resistência local tendendo a autarcia pode também anunciar uma futura civilização pós-imperialismo financeiro.
1. Que economista que se preze não sonha encontrar solução teórica para alguma das principais questões que nos assolaram nas duas últimas dezenas de anos? Alguém será capaz de resolver duma só penada problemas como as monoculturas, os químicos e a fome de quase um bilião de humanos, as ameaças climáticas, a estrutura financeira quase autista que dá cabo das economias locais, a insuficiência democrática com o desprestígio crescente dos políticos e os populismos consequentes, sem falar das dificuldades dos sistemas de ensino? Mais: fazer isso num discurso em que as afirmações teóricas são argumentadas com exemplos práticos de várias zonas do globo. Pois bem, houve Alguém que o fez e nos é mostrado, são muitos milhares de pessoas empenhadas em soluções locais muito diversas, algumas com 20 e mais anos de experiências, a maior parte mais recentes, respostas imaginativas às crises globais, que vão além de todas as ‘alternativas’ do ‘não há alternativa’ ideológico. O filme que as conta, um milhão de espectadores em França, chama-se singelamente Amanhã.
2. Um dos exemplos, que se multiplica por muitas outras cidades, foi como a população pobre de Detroit, após o afundamento da indústria americana do automóvel e o êxodo da população qualificada, criou por tudo quanto era sítio agricultura diversificada e próxima, com inovações instrumentais de jardinagem manuais mais rendíveis do que tractores, aproximando-se duma alimentação auto-sustentada. As energias renováveis, que são da ordem do local justamente, são aproveitadas em muitas zonas que prescindem do petróleo e do gás. Uma fábrica de envelopes francesa tem 20 anos de experiência voltada para as condições de trabalho e de produção e não para o lucro, com um ciclo de reprodução que tende a dispensar matéria-prima nova, recorrendo aos desperdícios do século XX e vendendo por sua vez os seus para reciclagem de agricultura (se bem me lembro). Outro exemplo é a de cidades inglesas como Todmorden que criaram um circuito fechado de moeda local que só vale para as suas instituições e não no mercado da libra (mostram uma nota de 21 libras!), não dando para entesourar e enriquecer. Quando antes de começar, pediram opinião a um conselho consultivo de economistas, ninguém foi capaz de prever o que se passaria: experimentem! Mas há 80 anos, desde a crise dos anos 30, que o banco suíço WIR (Basileia), que a maior parte dos suíços não conhece, criou uma moeda que serve localmente entre elas umas dezenas de milhar de PME. Decisivo nestas moedas locais é a ‘confiança’ que as sustenta, os empréstimos, vendas e compras. Exemplos ainda de democracia, na Islândia contra a decisão do governo de ‘salvar’ os bancos (e os seus empréstimos a ingleses e holandeses, o filme não fala disso) forçaram a demissão dele e dos directores dos bancos, chegando a criar uma nova constituição, ou em aldeias da Índia pondo brâmanes pobres a conviverem com intocáveis também pobres; ou para certas tarefas a ideia de eleições por sorteio entre cidadãos, como se fazia na Grécia e na Roma antigas e nos júris de tribunais, com grandes vantagens em termos do seu empenho nas tarefas para que foram eleitos. Enfim, a escola finlandesa autónoma, sem exames nacionais nem ‘ranquingues’ de concorrência, cujos currículos são revistos de 6 em 6 anos, num processo que vem desde 1971.
3. O que este filme mostra é como que um retorno a Aristóteles, o primeiro grande filósofo-cientista: como se articula a polis, a cidade local, de forma parcialmente auto-sustentada e se a defende das agressões globais, roubando-lhe inclusive munições e deixando como global o que o merece. Dá para pensar que onde haja qualquer crise sentida localmente, sabendo-se das outras experiências e hoje isso é muito fácil, pode-se encontrar de forma relativamente rápida maneiras de reagir onde se está a ser atingido. Ao contrário duma revolução clássica, conduzida por cima e destruindo para revolucionar, é a gente debaixo que se levanta, deixando os de cima a terem de se dar conta do que lhes está escapando. Tenho buscado em livros, como é meu mister, resposta para estas crises sem rosto e sem responsáveis que não sejam burocratas e gente de finanças à solta, resposta que passe pela gente de carne e osso que vejo nas ruas e nos comboios; paradoxalmente foi um filme que me veio aliviar as angústias quanto ao futuro, tenho filhos e netas: há saídas para o apocalipse, garante o filme Amanhã.
4. A alusão a Aristóteles é à noção de polis autárcita, auto-suficiente, implicando a cidade propriamente dita e a região agrícola que a envolve (Politica). É o que os historiadores chamam “cidade Estado”, mas era de facto, em linguagem do antropólogo Pierre Clastres, a cidade contra o Estado, a impedir que houvesse um Estado grego dominando as várias cidades autónomas. Como aqui, estes acontecimentos locais defendendo-se dos circuitos globais, sem deixar de aproveitar deles tudo o que lhes seja proveitoso. As sociedades agrícolas têm como estrutura de base a região, uma cidade com artesanato e algum mercado e estrutura politica adequada; quando cosmopolitas, nomeadamente o império romano, criaram redes de super-estruturas inter-regionais, como as modernas nações. E foram essas regiões que sobraram do afundamento do império romano ocidental latino (e aliás também oriental, de língua grega), oferecendo a base do feudalismo medieval até que as regiões recomeçaram a mexer em comunas vivas e algumas universidades se desenvolveram, a recuperar os textos antigos e a estudá-los e discuti-los.
5. É esta estrutura que o filme mostra estar a ser criada em muitos lados, eles andaram por dez países mas dizem no final que há muitos mais a efervescerem, em defesa face às agressões do global, não necessariamente contra todo o global, mas contra as destruições que ele provoca por ignorância das bases cívicas e económicas que o sustentam, redes entre regiões que as ignoram. Mas sendo assim, esta ossatura de resistência local tendendo a autarcia pode também anunciar uma futura civilização pós-imperialismo financeiro, quando este se for criando fendas que ele não saiba e possa remediar, pôr-lhe remendos duráveis. Então já provavelmente as novas realidades cívicas estarão relacionadas entre si por redes de comunicação mais ligeiras e diversificantes. Eis como o Amanhã me faz sonhar.
Filósofo