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O que tem a luz de Agosto?

Faulkner falava de uma luz rara no Mississippi. Pavese descreveu a luz e a sombra das ruas desertas. Rubem Fonseca desceu à luz dos subterrâneos. Modiano perdeu-se na multidão com cheiro a protector solar. Agosto, uma ampla metáfora.

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Joshua Lott/Reuters

Num dia de Agosto uma pequena cidade do Mississippi ilumina-se com as chamas que consomem a casa de uma mulher branca que vive no caminho onde mora a população negra. Diante do fumo amarelo que se eleva no horizonte "como um monumento", alguns homens, trabalhadores numa serração, conversam: "... O que será? Não me lembro de nada para aquelas bandas com tamanho suficiente para fazer tanta fumarada a não ser a casa dos Burden".

Falavam da casa que era agora de Joanna Burden, mulher solteira, conhecida, temida e desprezada por ser "amiga" dos negros. E logo outro homem: "O meu pai diz que ainda se lembra como há cinquenta anos as pessoas diziam que deviam era deitar-lhe fogo, e com um bocado de gordura humana para ajudar a pegar bem." Aos seus olhos, a mulher morria queimada graças a uma justiça que os homens atribuíam ao divino num mundo fortemente marcado pelas noções de pecado e castigo sempre que alguém desafiava as convenções. A luz de Agosto que dali se via era mais do que a luz de um fogo, era um de ajuste de contas que iluminava uma falta mortal lançando, por sua vez, sombras numa paisagem jamais redimida.

Original de 1932, Luz em Agosto, sétimo romance de William Faulkner, é uma poderosa síntese do universo literário daquele escritor do Sul que teve como ponto alto o chamado ciclo Yoknapatawpha, o célebre condado ficcional criado à imagem de New Albany, Mississippi, onde o escritor nasceu em 1897, e de que fazem ainda parte os romances O Som e a Fúria, Quando eu Morrer ou Absalom Absalom! Em Luz em Agosto seguimos a pista de dois solitários, uma rapariga grávida, Lena, que viaja a pé entre o Alabama e o Mississippi atrás de Lucas Burden, o pai do seu filho, e Joe Natal, um homem de raça indefinida, branco que acredita ser negro e vive à margem. São o centro de uma complexa teia de relações que materializam neste romance a tal grande síntese do mundo faulkneriano. Relações religiosas, de classe, sexuais, amorosas, sobre o papel da mulher na sociedade, e, sobretudo, de raça, a eterna pedra no sapato da América. 

Editado em Portugal em 1996, o livro tem agora uma segunda edição, vinte anos depois, quando o racismo está no centro do debate em vésperas de eleições norte-americanas. Mais do que em qualquer outra época este romance é nomeado sempre que se faz a inevitável pergunta: "Qual grande livro de William Faulkner?" 

Não é apenas pela temática - vasta, aprofundada, sobre a motivação e o desejo humano - como pela linguagem e um modo de narrar que evita sentimentalismos ou julgamentos, mesmo quando se tecem comentários e um dos motes seja uma espécie de denúncia social ou de como um mal íntimo pode contaminar. Isso pode ser dado pelo modo como o escritor revela, por exemplo, a génese de um sentimento ou emoção para depois mostrar o efeito da sociedade sobre essa semente.

Ao ler o Sul de Faulkner o leitor lê-se em qualquer latitude. Avancemos com Byron Bunch, o observador solitário que se apaixona por Lena: "Byron escutava-os em silêncio, pensando de si para si como as pessoas são as mesmas em toda a parte, mas como numa cidade pequena, onde é mais difícil praticar o mal e mais escassas as oportunidades de se ter uma vida realmente privada, parecia que as pessoas eram capazes de inventar histórias sem fim em nome de outras. Porque era quanto bastava: uma ideia, uma palavra vã soprada de mente em mente." Faulkner revela sempre um conhecimento do íntimo. Por vezes num tom a soar falsamente ingénuo, noutras de uma inclemência arrepiante e a desafiar sentidos. "Só o conhecimento, não os lamentos, pode recordar mil ruas selvagens e solitárias", ouve-se o narrador no que poderia ser uma declaração de intenções de Faulkner sobre o modo como escreve. Há um determinismo, religioso da ou História, o modo como o passado irrompe pelo presente, seja através da memória ou dos factos, o que por vezes é a mesma coisa.  

Em Luz de Agosto está não só a história de um país e de um modo de ser - moldado pela religião e pela violência - que surgem como faces da mesma moeda, mas também a exposição da tragédia humana, o homem condenado à solidão no modo como Faulkner o apresenta, seja pela falta de um Deus, seja por uma maldição ou castigo divino, já que o pecado é inevitável. 

Que luz então é esta? É a do incêndio que "castiga" e profana, mas também a luz de que se recorda o reverendo Hightower perante "os últimos lampejos acobreados da tarde desvanecerem-se" quando olha a cidade pela janela do seu escritório. Uma luz "quase audível como as notas amarelas e morrentes de um naipe de trompetes, morrendo numa pausa de silêncio e espera da qual voltariam a ressurgir. E ainda antes de as notas decrescentes se extinguirem, já lhe parecia ouvir no ar o prenúncio do trovão, pouco mais forte ainda que um sussurro, que um rumor". 

A luz adquire uma aura mística. Vive-se dentro ou fora dela, metáfora do bem por oposição à sombra. Mas também é a luz do nascimento; dar à luz como Lena iá dar em Agosto. Conta-se mesmo que light in August é, na gíria do sul, uma expressão para nascer. Faulkner hesitou no título. Tem-se especulado sobre o que o levou à decisão final, mas sabe-se que ele rejeitou a última explicação --  a da ligação entre luz e nascimento -- quando falou da escolha. Referia-se antes a uma luz no Mississippi que acontecia em meados de Agosto, quando os dias começavam a arrefecer, tremeluzente, a remeter para uma antiguidade clássica. Diáfana e que durava apenas um ou dois dias. Conta que foi nela que pensou quando deu o título ao livro.

Outros agostos

A literatura continua assim além do ponto final deste livro tantas vezes apresentado como um dos grandes romances do século XX e que serve de mote para falar de outros grandes livros onde Agosto é tema. Pela luz, pela atmosfera, por factos que Agosto desencadeou e parecem torná-lo um estímulo criativo. No cinema, na pintura, na poesia, na música. O que é que Agosto tem? Cruzem-se páginas de alguns desses livros à procura de pistas. Tem um cheiro doce e quente, uma nostalgia sublinhada pelas grandes cidades que se esvaziam, tem lassidão, um tédio que parece eternizar-se, sombras que escondem o crime e o interdito, o magnetismo do sol, da nudez, a sensação de que há sempre tempo, e a imagem da infância onde esse tempo parecia não acabar. 

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foto: TODD KOROL/REUTERS

"De todos os Verões que passei na cidade semivazia não sei mesmo que dizer. Se fecho os olhos, eis que a sombra retoma a sua função de frescura e as ruas são isso mesmo, sombra e luz numa passagem alternada que investe e devora. Amávamos a noite, as nuvens tórridas que pesam sobre as casas, a hora calma. De resto, até a noite nos fazia o efeito daquela breve penumbra que engole que vindo de um grande sol entra em casa. Encontrávamo-nos ao escurecer e era já manhã, um outro dia tranquilo. Recordo o perfume quente, as vozes nas ruas. Sei onde cai a uma certa hora a quadra do Sol na tejoleira da sala." Cesare Pavese (1908-1950) descreveu o sentimento de se estar em Agosto como o da perseguição a um paraíso onde já se esteve e se quer voltar a estar. Nem que seja através da memória. O campo e a cidade de Turim são recriados dessa forma em Férias de Agosto, uma viagem nostálgica à infância que se tornou num dos livros de culto de mais do que uma geração. 

Publicado em 1946, teve a primeira edição em Portugal em 1965 pela Arcádia, numa tradução de Ana Hatherly. É essa que tomamos como referência para seguir o deleite com a memória ou a tristeza do seu confronto com o presente. A paisagem familiar é o teatro onde todos os sentimentos se manifestam, e alguns os que levariam Pavese ao suicídio em 1950. "Às vezes, se me encosto a esta terra, sinto um embate impetuoso que me arrebata como uma enxurrada e quer submergir-me. Uma voz, um odor, bastam para prender-me e atirar-me que sabe para onde."

O Verão de Pavese é um verão de sons, como os das mães a gritar na rua os nomes dos filhos; de sabores, como os das cerejas na boca dos rapazes enquanto falam de mulheres; de cores, como as da cidade na última chuva; de novidades como o nascer de um vitelo; de sensações, sobretudo a de se julgar saber que aquela paisagem, aquelas casas, aquelas pessoas estariam ali para sempre.

É um Verão contado com uma nostalgia que não existe, a não ser pontualmente, em Domingos de Agosto (D. Quixote, 2014), romance de 1986 do Nobel da Literatura Patrick Modiano (n.1945). Nesse há uma urgência no modo de contar os dias de um amor que começou nas margens do rio Marne e terminou em Nice. “Sim, conheci Sylvia Heuraeux, esposa de Villecourt, numa manhã de verão, no Beach de La Varenne. Eu tinha chegado há alguns dias às margens do Marne para tirar fotografias. Um pequeno editor aceitara o meu projecto de um livro que se intitularia Praias Fluviais.” Narrado na primeira pessoa, conta a história de uma fuga com deambulações por cafés e relações fantasmagóricas até haver uma falta e a tentativa de preencher o vazio que fica com a resposta a algumas perguntas.

Essas respostas surgem à medida que se avança do presente para o passado, o tempo mais solar. “… no princípio, precisamente depois de termos abandonado La Varenne, conhecemos um breve período de repouso e bem-estar. Em La Baule, no mês de agosto. Tínhamos alugado, através de uma agência da Rua des Lilas, um quarto próximo do minigolfe. Até cerca da meia-noite, a gritaria e as risadas dos jogadores embalavam-nos. Sem chamar a atenção de ninguém, íamos beber um copo numa das mesas, debaixo dos pinheiros, diante do balcão com telhado de ardósias verdes onde se distribuíam os tacos e as bolas de golfe.”

Agosto surge como metáfora de felicidade por oposição a uma névoa onde a história é montada e se desenvolve. É uma ideia que atravessa muitos destes livros onde Agosto está no título. Agosto é a palavra que o inconsciente associa ao deleite. O que o escritor faz com essa ideia de partida é construir a sombra. O que é que Agosto esconde?

Agosto foi o mês da batalha de Tannenberg, na então Prússia oriental, que outro Nobel, Aleksandr Soljenitsin (1918-2008), narra no romance August 1914, por editar em português. Num livro que mistura história e ficção, autor de Arquipélago de Gulag, conta a derrota russa, espectável - na versão de Soljenitsin – dadas as limitações do exército russo nos derradeiros anos do império. O livro teve várias versões, algumas forçadas, quando o escritor vivia na União Soviética, outras porque ia acrescentado detalhes. O livro seria publicado em 1971, um ano depois de ter ganhado o Nobel.

E Agosto foi o mês do suicídio de Getúlio Vargas. Aconteceu em 1954 e é a génese de um dos mais notáveis livros de Rubem Fonseca, Agosto. O centro da narrativa é o assassínio de um empresário e o envolvimento do palácio presidencial num crime numa altura em que o país passava por um momento tenso.  “Alzira pensara que a História redimira seu pai em 1950. Agora, naquele aflitivo agosto de 1954, em que pela primeira vez via o pai como um velho desencantado, um homem sem esperança, sem desejo, sem vontade de lutar; um homem pequeno, frágil, doente, vítima de aleivosias torpes dos inimigos, dos julgamentos ambíguos dos amigos; agora ela tomava a História como uma estúpida sucessão de acontecimentos aleatórios, um enredo inepto de falsidades, inferências fictícias, ilusões, povoado de fantasmas.”      

O romance, original de 1990 que a Sextante publicou em 2013, tem todos os ingredientes que definem a literatura de Rubem Fonseca (n.1925). Crime, enigma, erotismo, malandragem, linguagem solta onde o vernáculo convive com a erudição, fôlego e ritmo veloz, humor e um apurado sentido do trágico. “Anteriormente, nas primeiras vezes em que se encontravam, assim que Luciana entrava na garçonnière Lomango exibia a ereta substância física do seu ardor amoroso, atirava-a impetuosamente sobre ela, rasgando sua roupa, mordendo-a, estuprando-a, maravilhando-a. Parte desse furor era pura encenação.”

Qualquer semelhança entre este Agosto e o de Manuel Teixeira Gomes (1860-1941), presidente da República portuguesa entre o fim de 1923 e 1925, é pouco mais do que a língua em que foram escritos. Teixeira Gomes foi político e foi também escritor com algumas obras de assinalar. Entre elas está Agosto Azul (1904) onde num registo diarístico, confessional, fala da juventude, da sua relação com a paisagem do sul e com um lado mais sensorial da sua vida. “O mar marulha brandamente nas restingas da barra que nós transpomos sem ondulação sensível”, escreve sobre o dia em que foi ver a esquadra inglesa à baia de Lagos. “Dão-me no peito nu os primeiros raios de sol, que eu esperava erguido à proa do bote, e atiro-me à água onde mergulho de olhos abertos, em voluptuoso torvelinho de prata lactescente. Tenho a ilusão de uma possível metamorfose, seguindo sem esforço o rastilho escumoso do bote, com arrancos de golfinho, pelo lençol da água esverdinhada onde todo o meu corpo se imbebe de fresquidão.”

É mais difícil encontrar hoje um exemplar deste Agosto Azul do que o não traduzido em Portugal August is a Wicked Month, da irlandesa Edna O’Brien.  É um dos romances mais viscerais da escritora de 85 anos que tem apenas dois livros publicados em português, Raparigas de Província e Byron e o Amor (ambos pela Relógio d’Água). Publicado pela primeira vez em 1965, o romance foi censurado na Irlanda católica devido ao modo como trata a sexualidade feminina.

A irlandesa Ellen, protagonista do romance, faz uma pausa na sua vida londrina de enfermeira e instala-se na Riviera francesa. Depois do divórcio e de muito tempo de abstinência ela quer sexo. Essa determinação perturba-a tanto quanto a liberta na sua condição de mulher. O’Brien descreve essa aventura com sentido de humor e do ridículo numa previsível sucessão de frustrações, as de uma mulher a tentar reencontrar-se. Uma amiga, Denise, acredita que Agosto é o mês para isso. “Agosto é um mês malvado”, responde-lhe Ellen depois do regresso da Riviera.          

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