Rio de Janeiro: tudo vai dar certo
Nestes dias de alvoroço e expectativa, os cariocas proclamam que tudo será um sucesso enquanto durarem os Jogos.
Há quem afirme que o Presidente Lula cometeu um erro histórico ao candidatar o país a anfitrião dos Jogos Olímpicos de 2016. Dizem os mesmos críticos que na hora da festa acabar, será o povo a pagar a fatura. Sempre prontos para o derrube, irão estes ainda comentar o fator incompetência na governação, a falha na infraestrutura, o cálculo dos prejuízos, o peso dos desperdícios. Mas o Brasil é fascinante e surpreendente, é vertiginoso e imediato na alternância dos seus ritmos. E assim, nesta fase em que a maior crise política, económica, social de sempre prenunciava uma quase catástrofe nacional, todo o cenário de repente se transforma. Contrariando previsões pessimistas do FMI, que determinavam queda da economia e desvalorização do real, e depois de bater no fundo, a bolsa de valores subiu, a moeda tem vindo a estabilizar-se, a curva de crescimento foi revista em alta.
Não pretendo erudição nestas matérias, e centro-me na realidade do Rio de Janeiro, bem carioca que sei ser, de pé no asfalto, se me é permitido o jargão de samba, nesta escrita. Assim como todo o povo brasileiro, sabedor de adversidade, eu experimentei o excesso do mal para melhor saborear o bem. Outras fases sombrias vivi, mergulhada na má notícia de cada dia, praticando a inteligência da adaptação, adivinhando a malícia, inventando o drible, o repente de salvação. Nos anos 80, os brasileiros suportaram a intervenção do FMI e do Banco Mundial, a moratória da dívida, a morte de Tancredo Neves, o Presidente da eleição direta, depois da ditadura militar. Assustaram-se pela explosão no Riocentro, contrariaram a ameaça de bomba no primeiro Rock in Rio. Seguiu-se o fracasso do governo Sarney, a inflação delirante, o supermercado vazio, a etiqueta “Eu sou Fiscal do Sarney” na lapela, a denunciar a contravenção no abastecimento. Adiante, o impeachment de Collor, o congelamento das poupanças, a falência das famílias. Passámos pelas transformações do cruzeiro em cruzado e cruzado novo, até ao real de Fernando Henrique Cardoso.
Etapas passadas, e nelas muitos pormenores haveria a acrescentar. No Rio, apagam-se as memórias de sofrimento, não se praticam lamentações. Mas o rancor manifesta-se, explícito e crescente. Neste momento, a realidade é mais perversa e a sociedade está dividida como nunca. Entre os defensores e os adversários de Dilma e Temer se instala o ódio, pró ou contra impeachment o confronto explode e preocupa muito a sério, porque até agora não tinha acontecido. Como se uma trégua tácita fosse acordada, o cenário político que envolve a cidade apaga-se agora para realçar a segurança, o aparato militar e policial, o contributo de todas as forças estaduais e federais no espaço público, que expõe o Brasil ao mundo.
Às vésperas da Olimpíada e no desenfreado correr dos acontecimentos, o Rio reage, e apesar de todos os males, já se organiza em festa. Nestes dias de alvoroço e expectativa, de notícias e previsões sobre o que poderá ou irá acontecer, os cariocas proclamam que tudo será um sucesso enquanto durarem os Jogos, já que sempre foram bem sucedidos os grandes momentos de multidão no Rio. As visitas dos Papas, os concertos de Frank Sinatra ou Roberto Carlos. Os réveillons de dois milhões de pessoas na praia de Copacabana, os desfiles das escolas de samba e os blocos de rua nos Carnavais, as finais de campeonato no Maracanã.
Ao turista ou visitante de passagem, é bom aconselhar prudência no entusiasmo, cuidado em circuitos de curiosidades nos morros e subúrbios. É bom, também, recomendar atenção às regras não europeias de comportamento, e olho vivo em tudo o que se passe em redor. No Rio de Janeiro há violência, sim. A vida e a morte estão coladas, o milagre é o grande delírio da vida. Acertadamente, por isso, tendo eu escapado de um anunciado assalto de rua, logo me disse a minha amiga Marci Dória que “No Rio, a gente não pode dar chance ao acaso”. Além de todas as circunstâncias, permanece a voz de Caetano Veloso em música: “É preciso estar atento e forte/ não temos tempo de temer a morte”. “E a gente segue. Todo o mundo torcendo, curtindo, vai dar certo”, confirma-me a minha amiga Eliana Caruso agora mesmo, a contar o ambiente da cidade.
Penso em Roberto da Matta, que em rodas sem fim de amigos me iniciou no mistério da brasilidade e tão bem escreveu sobre o Brasil com maiúscula, na cultura que “sabe bem conjugar comida farta com pobreza, hino com samba, homem com mulher e até Deus com Diabo.” Sinto saudades de Millôr Fernandes e das conversas sobre identidade e subúrbio, poder e contrapoder, humor e inteligência, mentira ou falsa verdade. Aprendi uma diferente medida do espaço e do tempo, descobri a importância da intuição sobre a verdade dos outros. Penso na desordenada cordialidade dos cariocas, na mistura de falas e significados, na facilidade e exuberância dos sons. Penso nos improvisos, nos expedientes, na brincadeira, na picardia, no jogo de sedução e namoro, na liberdade do corpo, no acaso e na sorte, na exaltação da alma, na vivência religiosa, na beleza demasiada da Natureza.
Em modo de remate e reflexão sobre o Rio, sou capaz de ouvir o porteiro Edmar, da rua Aperana, sempre sábio e alertado, a clarear os sustos de cada dia: “Ô, dona Leonor, no final tudo vai dar certo!” Eu acredito que sim. Pela razão, do fundo do coração.
Jornalista e escritora