O hotel-fantasma dos Açores que renasce com arte lá dentro
No final dos anos 1980 um hotel luxuoso foi construído na ilha de São Miguel indo à falência um ano e meio depois. Agora, em ruínas, renasce graças ao festival de artes Walk & Talk, numa altura em que o modelo turístico para a ilha volta a ser o tema de todas as conversas.
É talvez a peça mais icónica da 6.ª edição do festival Walk & Talk, que colocou nos últimos anos os Açores no mapa artístico global, transformando a ilha de São Miguel num laboratório de criação contemporânea. Num amplo átrio com um pé direito de cinco andares pertencente ao hotel em ruínas Monte Palace, com vista para a Lagoa das Sete Cidades, o artista espanhol Javier de Riba, de 30 anos, criou uma pintura mural no chão inspirado nos mosaicos hidráulicos de Barcelona. As paredes escurecidas contrastam com o colorido do chão, num resultado de grande impacto visual que parece agradar aos visitantes, um facto comprovado pela profusão de fotografias partilhadas nas redes sociais.
O festival, que nos últimos anos ganhou visibilidade pelas artes visuais e exposições, pelo circuito de arte pública, pelas residências artísticas, performances, conferências ou concertos, encorajando a criação em diálogo com o território e a comunidade locais, focou-se este ano em questões decorrentes da arquitectura e da performatividade no espaço público. É Jesse James, o director do evento, quem o afirma. “Foi por isso que convidámos os arquitectos Giacomo Mezzadri e a Joana Oliveira, do Mezzo Atelier, que estão habituados a pensar de uma forma multidisciplinar, quando começamos a seleccionar os artistas e a imaginar espaços onde poderiam agir. A ideia do hotel foi da Joana Oliveira.”
Foi ela também quem convidou o artista catalão Javier de Riba. “O trabalho dele faz todo o sentido em espaços abandonados e é aí que ele gosta de operar, restituindo dignidade a lugares em decadência. Quando pensámos em lugares para ele intervir o hotel surgiu quase de imediato”, diz-nos ela, que nasceu na ilha e se recorda que a história do hotel de cinco estrelas e que foi à falência gerou sempre muito fascínio.
“Falava-se muito do luxo que haveria lá dentro e havia um mistério e um misticismo à sua volta por causa da proximidade da Lagoa das Sete Cidades”, recorda. Hoje o hotel em ruínas é lugar de romaria, seja entre os habitantes locais ou entre os turistas que nos dois últimos anos têm chegado em maior número por causa dos voos de baixo custo. Invariavelmente há carros estacionados à beira da estrada que circunda o hotel e lá dentro famílias deambulam, tirando fotos, subindo o que resta das escadarias em caracol por entre destroços, restos de alcatifa, alguns azulejos e inscrições do artista Miguel Januário (MaisMenos), abeirando-se das áreas que têm vista favorecida para a lagoa ou ascendendo ao terraço.
“É um paradoxo o hotel ter agora mais sucesso como ruína do que enquanto foi um espaço luxuoso e a peça ainda veio intensificar mais isso”, sorri Joana. Depois de uma semana de intenso trabalho, Javier de Riba, completou a peça na última sexta-feira, na companhia da namorada, a também catalã Maria Lopez, com quem forma o colectivo Reskate Arts & Crafts. Ele começou a pintar solos há um ano. “Gosto de perceber como é que uma intervenção mínima pode mudar a percepção de todo um espaço abandonado”, diz-nos, enunciando as dificuldades tidas na operação do hotel: “o grande desafio, inicialmente, foi limpar um solo em ruínas, com pedras, lixo e pedaços de madeira, e depois a luta foi mantê-lo seco. Tivemos que tapar com plástico o tecto por causa da chuva e tivemos em atenção a humidade porque há imensa. Essa foi a maior dor de cabeça: secar o solo para fazer a base em branco e ir pintando meticulosamente.”
Antes de interferir em qualquer espaço, gosta de conhecer a sua história. E no caso do hotel não foi diferente. Constituído por cinco pisos, tinha 88 quartos, dos quais uma suite presidencial, quatro grandes suites de luxo, quatro quartos duplos com saleta, 27 quartos duplos e 52 suites juniores. Possuía ainda dois restaurantes, três salas de conferência, uma discoteca e várias lojas. Na altura em que foi construído muitos pensaram que o turismo nos Açores iria ter um grande desenvolvimento, mas ninguém queria ir lá dormir. Declarou falência 19 meses depois da inauguração.
Os jornais classificaram a operação como a “maior vergonha” da ilha. Mas o pior estava para vir. Em 2011 o edifício deixou de ser vigiado e o saque foi quase imediato. Móveis, portas, carpetes, banheiras e até os elevadores, tudo foi retirado. Poderá ser a obra de arte de Javier de Riba o próximo alvo dos larápios? Este ri-se da conjectura. “Não creio. O que vai acontecer com a erosão da peça é começarem a interrogar-se se aquilo fez parte do projecto inicial ou não e essa dúvida agrada-me. Constituirá um sintoma de que a peça se integrou organicamente naquele espaço.”
O seu objectivo, ao agir artisticamente em locais abandonados, é lançar um outro olhar sobre os mesmos. “Com a minha pintura tento mostrar que aquilo não é um espaço morto. Não é um fantasma que está ali. Pelo contrário, apesar de parecer decrépito à maior parte das pessoas, esconde imensas possibilidades de recriação e reutilização. No caso concreto do hotel existe uma grande curiosidade à volta dele porque tem uma presença muito forte. Aqui tudo é mesclado, integrado na paisagem e no vulcão. Por outro lado gerar a circulação de pessoas nestes espaços dá-me prazer. O luxo está ligado à exclusividade e o facto de agora todos terem acesso a este espaço acaba por ser uma forma de o democratizar.”
Existem muitas projecções acerca do hotel fantasma. Jesse James diz que para a sua geração era “símbolo de fracasso porque nos anos 1980 não havia estratégia nem modelo de turismo para os Açores. Tínhamos acabado de entrar na União Europeia, ainda não havia fundos estruturais para uma região pobre e fazer o hotel no topo da cratera de um vulcão, onde a maior parte do ano está muito nevoeiro, numa ilha no meio do Atlântico, sempre me pareceu um devaneio incompreensível.”
Mas em Abril deste ano o seu olhar modificou-se. “Um artista canadiano meu amigo estava cá, foi ao hotel e veio de lá impressionado, dizendo que aquilo era um autêntico monumento. E essa palavra ficou-me: monumento. Nunca tinha olhado para aquilo dessa maneira. Foi a partir daí que nos interessou, para além da obra do Javier de Riva, voltar a interrogar o hotel e o que ele representava enquanto possibilidade de pensarmos não só o passado mas também o presente.” E o que revela ele hoje? “Um sistema em falência, o lucro a todo o custo, o turismo virado de costas para o território e a comunidade. Tudo o que os Açores não precisam hoje. Um sistema com tanto de frágil como de selvagem. E o próprio edifício parece contemplar isso, em betão, imponente, bem integrado na paisagem, mas fragilizado, não resistindo.”
No final do ano passado ficou a saber-se que o que resta do hotel havia sido adquirido por um grupo de investidores estrangeiros que o colocou posteriormente à venda em sítios da Internet por 380,350 euros. Alguma imprensa local noticiou que a “vergonha turística açoriana poderia voltar a ser o orgulho do arquipélago.” Mas Jesse James não partilha dessa visão.
“Duvido que aquilo alguma vez volte a ser um hotel de cinco estrelas até porque a paisagem se apropriou do edifício. É uma extensão daquela encosta. Sinceramente preferia que ele ficasse assim, funcionando como um monumento até para memória futura, recordando-nos que o sistema quando é selvagem, não olha a meios, é monumental, não é acautelado, não estabelece relação com a comunidade, não é feito à escala do próprio sítio onde se insere, simplesmente não funciona e não é sustentável.”
De alguma forma é como se as ruínas personificassem aquilo que os Açores não desejam para o seu futuro na relação com o turismo. Apesar do maior fluxo dos últimos anos nada de essencial se perdeu, a escala ainda é humanizada, a especulação ainda não se faz sentir a níveis insustentáveis e a visibilidade conseguida por festivais como o Walk & Talk ou o Tremor, ou pelo Centro de Artes Contemporâneas Arquipélago, vieram até introduzir um olhar renovado sobre a ilha. “A cultura contemporânea pode ajudar a reinterpretar, a analisar e a pensar sobre tudo o que temos aqui de fantástico”, diz Jesse James. “A motivação principal das pessoas para virem aos Açores é a paisagem, mas a programação cultural pode ser também essencial na relação que se cria com esse território, possibilitando outras interacções e descobertas.”
Uma dessas descobertas singulares pode ser o Hotel Monte Palace, agora mais sumptuoso do que nunca com o mural no chão de Javier de Riba.
O PÚBLICO viajou a convite do festival Walk & Talk