O império das rolhas já pode respirar de alívio
Ao fim de 15 anos, a indústria corticeira ganhou a batalha contra o TCA, que ameaçou a sua existência. O agente do “cheiro a rolha” foi controlado com a ajuda da ciência. Hoje, a indústria produz e vende 40 milhões de unidades por dia. Próximo combate: recuperar os frágeis montados nacionais.
Num espaço protegido ao fundo de uma das fábricas da Amorim e Irmão que se encontram no caos urbano de Santa Maria de Lamas, trabalha-se num ambiente de vaidade e secretismo. Carlos Costa, um jovem engenheiro, lidera uma equipa de 20 técnicos que se movimentam em torno das oito linhas de produção que utilizam a ND Tech. As fotografias são proibidas e o espaço parece mais um laboratório do que uma fábrica. Entre tapetes rolantes mecânicos, fios que transmitem e recebem dados, ecrãs com gráficos e braços mecânicos da robótica, circulam peças cilíndricas de cortiça a que habitualmente chamamos "rolhas".
Só que as 20 mil rolhas que saem por dia de cada uma das linhas não são umas rolhas quaisquer. Todas têm de passar por um sofisticado processo de controlo, a cromatografia gasosa, que garante que os seus níveis de tricloroanisol estão abaixo dos 0,5 nanogramas — o equivalente a uma gota de água em 800 piscinas olímpicas. O tricloroanisol, o famigerado TCA que os amantes de vinho identificam pelo aroma a mofo ou “a rolha”, esteve prestes a matar a indústria corticeira nacional há 15/20 anos. A indústria reagiu apostando na ciência. A unidade de ND Tech da Amorim é o primeiro sintoma claro de que a guerra parece estar ganha.
Quem olhar hoje para uma rolha como um objecto rudimentar, uma simples extracção de cilindros da casca dos sobreiros, desengane-se. “A rolha não é apenas um vedante. É uma válvula extraordinariamente sofisticada”, explica Carlos Jesus, director de marketing da Corticeira Amorim. A guerra contra o “cheiro a rolha” exigiu à indústria uma mudança profunda. Obrigou-a a entrar na modernidade. Impôs-se a obrigação de acrescentar tecnologia a um recurso natural que Portugal domina à escala global.
A selecção da matéria-prima é mais exigente, o ambiente das fábricas está irreconhecível, ao ponto de suscitar o interesse de turistas (mais de 2000 visitaram a Amorim no ano passado), os processos de controlo do TCA tornaram-se obrigatórios, a escolha final deixou de ser feita por gestos repetitivos de centenas de mulheres e passou para alçada de máquinas sofisticadas que analisam o exterior e o interior das rolhas com recurso a software desenvolvido em Portugal.
Como consequência, a rolha passou a dura prova de competição com os vedantes sintéticos (os screwcap, cápsulas de alumínio, e as cápsulas plásticas) e reafirmou a sua posição confortável de líder de mercado. Os números são optimistas. A indústria nacional produz 40 milhões de rolhas por dia, que valem 70% das exportações do sector. No ano passado, as 670 empresas da fileira exportaram 900 milhões de euros de bens que têm por base um recurso natural renovável, um valor que regressou aos tempos de ouro de 2000/2002.
Para chegar a este momento, o sector teve de passar testes pelo menos tão duros como os do calçado ou o têxtil. Aqui, porém, a ameaça não veio da liberalização dos mercados mundiais nem da concorrência chinesa. Veio do TCA. “Há 10 ou 15 anos chegámos a pensar que o sector ia acabar”, admite João Rui Ferreira, presidente da APCOR, a associação que reúne a maior fatia da indústria. Nessa altura, críticos mundiais de vinhos influentes, como a britânica Jancis Robinson ou o norte-americano Robert Parker, proclamavam a necessidade de se enterrar a rolha de cortiça para acabar de vez com as altas taxas de incidência de TCA nos vinhos.
Em concursos mundiais prestigiados, os júris chegaram a rejeitar 7% das garrafas apresentadas. Nenhuma indústria toleraria esta margem de erro, dizia-se. “A Corticeira Amorim está a gastar uma fortuna com jornalistas voadores e com a organização de conferências dignas para nos mostrarem que são boas pessoas”, protestava em 2001 Jancis Robinson, antes de se associar a uma vaga de fundo que proclamava o funeral das rolhas.
Durante anos, a indústria viveu à sombra do seu monopólio e não deu conta do impacte que as descobertas que o cientista suíço H. Tanner publicou em 1982 no Journal of Agricultural Food Chemistry, nos EUA, poderiam ter no sector. Aí, Tanner fazia uma associação directa entre as rolhas e o TCA. Depois, mesmo que este composto natural viesse da água usada na lavagem das garrafas ou das adegas, pouco importava: a cortiça seria sempre a origem do problema. Produtores de todo o mundo começaram então a mudar em massa para os vedantes sintéticos, principalmente os produtores de vinhos brancos ou de vinhos mais baratos. A margem de risco zero de contaminação com TCA e o seu preço mais baixo tornava-os mais competitivos. A guerra parecia perdida.
Era preciso mudar tudo e a indústria mudou muito. Mudou a imagem através de campanhas mundiais de sensibilização para o valor da cortiça como vedante e como produto natural, que em 15 anos consumiram 41 milhões de euros. Mas mudou principalmente na sua atitude. Deixou de considerar o TCA com um problema que fazia parte da ordem natural das coisas e passou a empenhar-se em encontrar uma solução industrial para o erradicar.
A fábrica da Amorim com a tecnologia ND Tech é a vanguarda desse esforço. No futuro próximo, a empresa espera produzir cem milhões de rolhas anuais com garantia de que todas passaram ao teste de detecção de TCA que, em média, serão 30% mais caras — podem custar até dois euros cada. Mas houve outras medidas que entraram na rotina da indústria. Como a abolição do uso do cloro. Ou a submissão das rolhas a altas temperaturas. O problema do TCA não acabou, mas dados do Cork Quality Council, que reúne empresas mundiais do sector, apontam para uma redução de 85% da sua incidência entre 2002 e 2014. Com estes dados na mão, as rolhas de cortiça recuperaram parte do seu prestígio perdido.
“Os melhores vinhos do mundo levam rolha de cortiça”, diz Carlos de Jesus, director de marketing da Amorim. Os consumidores estão dispostos a pagar mais para comprarem vinho com rolha de cortiça, dizem os estudos de mercado — 93% dos americanos ou 86% dos italianos dizem-se dispostos a pagar até mais quase quatro euros pelos vinhos com rolha.
Entre 2000 e 2015, as rolhas recuperaram mais 9% da quota de mercado. “Mais de 50 milhões de garrafas passaram para a cortiça só nos Estados Unidos”, diz Carlos de Jesus. As rolhas são hoje aplicadas em 12 mil milhões de garrafas de vinho por ano, depois de em 2009 a produção do sector ter baixado para os dez mil milhões; os screwcap (tampas de alumínio) estabilizaram em torno dos quatro mil milhões de unidades, depois de terem duplicado as suas vendas entre 2001 e 2009; e os vedantes de plástico estão em queda, situando-se nos dois mil milhões de unidades vendidas.
Com o negócio das rolhas, a fileira da cortiça pôde então dedicar-se a reforçar posições e a afastar-se dessa imagem antiga que a associava à simples manipulação de um produto natural. A confiança é evidente. “Vivemos uma época entusiasmante na indústria da cortiça. Cruzar produtos naturais com tecnologia dá-nos uma vantagem imbatível”, diz Carlos de Jesus. “Estamos a viver uma revolução. As pessoas não se estão a aperceber, mas a revolução está a acontecer rapidamente”, nota João Rui Ferreira. “O sector está aí para durar e para facturar”, explica Alírio Martins, presidente do Sindicato dos Operários da Cortiça.
O optimismo justifica-se pela extraordinária complexidade da cortiça, um produto elástico que não apodrece, que tem propriedades térmicas e isolantes. “A cortiça vai ser a especiaria do século XXI”, diz Albertino Oliveira, da Sedacor, uma empresa que factura 30 milhões de euros por ano e que se destacou pelo empenho em fazer pontes com outras indústrias (como a têxtil ou o calçado) para desenvolver novas aplicações para o produto.
Os problemas do montado
No entanto, depois de aprender a lucrar com a ciência e com a tecnologia, a indústria vai ter de aprender a superar a ameaça da falta de matéria-prima. “Se há um sector que precisa de ter uma abordagem à escala da fileira é a cortiça”, nota Alberto Castro, professor da Universidade Católica do Porto e coordenador de um estudo sobre o sector divulgado este ano. “Durante muito tempo achava-se que a cortiça chegava e sobrava. Hoje, a concorrência é intensa, já não é óbvio que haja uma abundância garantida de matéria-prima, principalmente ao nível da qualidade”, continua Alberto Castro. Alírio Martins, operário da Amorim desde os seus 13 anos (começou a trabalhar em 1978), concorda. “Não sei se continuaremos a ter cortiça boa. A cortiça piorou um bocado nos últimos anos”, diz o sindicalista.
Portugal ainda é o maior produtor mundial de cortiça, com 47% do total mundial. Mas apesar de as áreas de montado terem aumentado nas últimas décadas, a produtividade tem caído. Numa campanha normal, o montado português produz cem mil toneladas de cortiça; nos anos de 1960 produzia 221 mil.
António Gonçalves Ferreira, o presidente da Associação dos Produtores Florestais de Coruche, o concelho que juntamente com o vizinho de Montemor-o-Novo detém o recorde da maior área de montado do país, recusa um cenário catastrófico para a produção florestal, mas está longe de encarar o futuro com descontracção. Nos mais de 200 mil hectares de floresta explorados pelos associados, os problemas são muitos. “O importante era mantermos um patamar de produtividade de 80 arrobas por hectare. Mas estamos a sair desse patamar. A produtividade está a diminuir”, lamenta António Gonçalves Ferreira.
As razões para o declínio são velhas e sabidas. O país menospreza os seus recursos. Já em 1998, um estudo da AgroGés, uma empresa de consultoria agrícola, liderado por Armando Sevinate Pinto notava que “os sobreiros têm morrido em grandes proporções e em todas as idades” e lamentava: “Chega a dar a impressão de que o país se resignou a ver os sobreiros a morrer.”
Boa parte dos danos causados ao montado foi resultado do desconhecimento. A mecanização da agricultura, nos anos de 1980/90, fez com que os produtores recorressem a grades para desmatar as áreas dos povoamentos. Mas, ao fazê-lo, “provocaram danos no sistema radicular dos sobreiros”. As mobilizações mais profundas de terras “fizeram desaparecer o carbono” e a limpeza excessiva do coberto vegetal provocou “a redução da matéria orgânica”, explica Gonçalves Ferreira. O recurso a intervenções pesadas num ecossistema frágil suspendeu por décadas a regeneração natural. Combinando todos estes danos, a densidade de árvores por hectare baixou, o seu estado sanitário agravou-se, a produção de cortiça caiu em termos de qualidade e de quantidade.
Para contrastar com este retrato negativo, há uma série de elementos que os subericultores costumam usar defesa da sua espécie. Em primeiro lugar, as áreas ocupadas pelos montados cresceram em Portugal ao longo do último século. A carta agrícola e florestal de 1906 dá-nos conta de plantações na ordem dos 360 mil hectares; na carta florestal de 1950 eram já 680 mil; e no inventário florestal mais actualizado, o de 2010, os sobreiros ocupavam 716 mil hectares, o equivalente a 35% do montado existente actualmente em todo o mundo. Só que nem toda esta área está em produção.
Uma boa fatia dos 53 mil hectares plantados entre 1986 e 1995 no âmbito dos apoios europeus à agricultura e floresta, estão em fase de crescimento. Mas são o tónico que pode equilibrar a balança entre a procura da indústria e a produção. Porque, na prática, entre 1974 e 1986 o montado tinha caído no esquecimento.
“O grande problema do sobreiro é que demora 40 anos a entrar em produção”, diz António Gonçalves Ferreira. Ao fim de 20-25 anos extrai-se cortiça virgem; nove anos depois, a cortiça secundeira; e apenas um ciclo depois se pode esperar cortiça de qualidade para rolhas. Para a produção, como para a indústria, vai ser necessário aplicar muita ciência para acelerar a data das primeiras extracções.
Um projecto liderado pela Universidade de Évora estuda os efeitos da rega no montado. Outros ensaios exploram novas soluções para a poda. A Amorim, o Instituto Superior de Agronomia e a Universidade de Évora juntaram-se para encontrar respostas à ameaça da cobrilha, um insecto que perfura a cortiça. Os resultados podem demorar anos. Na fileira, há a sensação de que o país perdeu tempo de mais.
Actualmente, a cortiça é pelo menos tão interessante para os produtores florestais como o eucalipto ou o pinheiro-manso, apesar da queda dos preços nos últimos anos (baixou de 35 euros por arroba em 2002 para pouco mais de 26), e nem as quatro décadas de espera pela primeira extracção o tornam esquecido pelos produtores — “Há razões históricas e culturais que levam produtores a continuar a plantar sobreiros, é um negócio sentimental”, explica António Gonçalves Ferreira. Depois, a produção nota que há hoje uma maior capacidade de a fileira responder aos seus problemas. “Estamos noutro patamar em relação há dez ou 20 anos. Melhorámos muito”, diz o líder dos produtores de Coruche.
Depois de superar o duro desafio dos vedantes sintéticos, a sustentabilidade do montado tornou-se crucial para a fileira. Com a produtividade do montado em queda, as importações subiram de 54 mil toneladas em 2004 para 75 mil em 2013. O risco é evidente: Portugal pode perder o controlo da matéria-prima. E comprometer o sucesso de uma indústria de 670 empresas onde trabalham mais de oito mil pessoas.