Um ameno monólogo

É preciso guardar as memórias do Cinema Novo português. Mas as 170 páginas do livro, das quais mais de trinta são de fotografias, apresenta um resultado curto e anódino.

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O jovem A-PV e o A-PV maduro separaram-se em meados dos 80s FOTO: Nelson Garrido

António-Pedro Vasconcelos é uma das figuras mais interessantes da geração de cineastas que começou a filmar nos anos 60 do século passado e ficou conhecida como a do Cinema Novo. Principalmente pelas suas contradições: o realizador de Call Girl e A Bela e o Paparazzo dificilmente agradaria ao aguerrido crítico da Imagem e do Cinéfilo, assim como o autor de Perdido por Cem, o filme português no qual as influências da Nouvelle Vague são mais visíveis (e audíveis), provavelmente seria alvo de uma alfinetada ou outra do nome mais sonante do chamado cinema comercial.

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O jovem A-PV e o A-PV maduro parecem ter-se separado em meados dos anos 80, para não mais se reencontrarem. Pior, o jovem A-PV esteve ao lado de (às vezes, ajudou a criar) fenómenos que o actual A-PV detesta: os cineastas malditos desprezados pelo público e financiados pelo Estado (João César Monteiro, por exemplo - de resto, a relação de amor-ódio entre este e Vasconcelos é fascinante, uma espécie de Truffaut/Godard à portuguesa); a desconfiança em relação ao cinema virado para o público (A Promessa de António de Macedo mereceu de A-PV palavras duríssimas, por ter sido filmado em estúdio, por usar técnicas do cinema norte-americano, por ser demasiado artificial); a segunda vida de Manoel de Oliveira, que, depois de décadas sem conseguir filmar (durante o Estado Novo), passou a lançar quase um filme por ano, os primeiros dos quais produzidos por Vasconcelos em parceria com Paulo Branco; este último, o produtor de boa parte do cinema português dos anos 90 e do início do milénio (bastante criticado por Vasconcelos), com o qual trabalhou e de quem se separaria desamigavelmente durante a produção de O Lugar do Morto.

Infelizmente, António-Pedro Vasconcelos: Um Cineasta Condenado a Ser Livre, registo da conversa/entrevista com/ao realizador português conduzida por José Jorge Letria, presidente da Sociedade Portuguesa de Autores (que co-edita com a Guerra & Paz a colecção O Fio da Memória, da qual este livro faz parte), pouco aflora estas fricções. Se por um lado Letria é um entrevistador excessivamente agradável, dando a A-PV total liberdade para falar, mal o interrompendo (as perguntas servem apenas como mote para os pequenos capítulos que compõem o livro), o próprio Vasconcelos não parece interessado em reabrir feridas antigas. Tirando a sua conhecida diatribe contra os subsídios estatais ao cinema (que caracteriza como a continuação do paradigma fascista do tempo da Primavera Marcelista), evita polémicas, sobretudo as pessoais. O leitor mais bisbilhoteiro de Um Cineasta Condenado a Ser Livre, talvez demasiado habituado à cultura de mexericos dos dias de hoje, sai, assim, frustrado pelo cavalheirismo de António-Pedro Vasconcelos. Percebe-se também que José Jorge Letria não pretende levantar grandes ondas, nem contrariar o entrevistado. O livro é mais uma biografia escrita a meias com o biografado ou um ameno monólogo pontuado por tímidas intervenções do espectador.

De qualquer forma, o resultado é sempre superficial. A infância e juventude de A-PV são abordadas à pressa, já que este conserva poucas recordações da altura (não deixa de ser engraçado num livro de memórias), e o resto da vida é estranhamente tratado com a mesma ligeireza, apesar de ficar a ideia de que havia muito mais a dizer, nomeadamente de certos momentos-chave: as tertúlias no Vá-vá com Alberto Seixas Santos, Paulo Rocha, Fernando Lopes, César Monteiro et al; a vida em Paris; o longo hiato entre Aqui D’El Rei! e Jaime; e, fundamentalmente, as filmagens das diferentes longas-metragens (fala-se de algumas historietas paralelas, mas quase nada sobre a produção das mesmas). É curioso saber que Vasconcelos se interessava mais pelos actores do que pelos realizadores e se identificava com o alto, magro e desajeitado James Stewart (se bem que a admiração por Roberto Rossellini, entre outros cineastas, fique bem vincada) ou que a literatura lhe é mais importante do que o cinema (a dada altura, diz que se tivesse de escolher um livro ou um filme, escolhia o livro), porém, depois de lido Um Cineasta Condenado a Ser Livre, não se pode propriamente afirmar que se conhece melhor António-Pedro Vasconcelos, supostamente o objectivo de obras deste tipo.

As 170 páginas do livro, das quais mais de trinta são de fotografias, não permitem um trabalho muito mais aprofundado, é verdade, mas também se pode perguntar por que razão José Jorge Letria não o quis fazer, quando o resultado é curto e algo anódino. Para mais, se se pensar que muitas das principais figuras do Cinema Novo já morreram e os sobreviventes estão a entrar ou já entraram nos casa dos 80: é preciso guardar essas memórias.

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