Veto à estatização dos transportes públicos divide maioria de esquerda
PCP garante que não alterará uma vírgula ao diploma, mas o PS mostra abertura para aproximação às preocupações de Marcelo, num dos temas que esteve na base do acordo para dar apoio ao Governo.
O veto do Presidente da República (PR) às alterações que impedem os privados de entrar no capital dos transportes públicos, o segundo desde que assumiu funções, parece estar a dividir a maioria de esquerda. O PCP mostra-se muito intransigente neste ponto, que ficou inscrito no acordo que permitiu o apoio parlamentar ao Governo socialista. Já o PS mostra abertura para acolher algumas das preocupações de Marcelo Rebelo de Sousa e o Bloco de Esquerda fica no meio-termo: apesar de garantir que não vê razão para mudanças, assume que pode ser necessária uma “ginástica” para garantir que os pressupostos iniciais do decreto se concretizam.
O diploma em causa, que foi aprovado na Assembleia da República em Junho, altera os estatutos e as bases de concessão da STCP e da Metro do Porto, as transportadoras do Estado que gerem, respectivamente, a rede de autocarros e o metropolitano naquela região. E o que estabelece, no fundo, é que estas empresas não poderão ser subconcessionadas ou detidas por investidores privados. Estas regras entrariam em vigor a 1 de Janeiro, dando seguimento aos compromissos políticos assumidos entre os partidos na formação do Governo e a anulação das subconcessões do executivo de Passos Coelho.
Num tom que se pode considerar algo crítico, Marcelo Rebelo de Sousa decidiu não promulgar o decreto, por considerar que “num Estado de direito democrático, o legislador deve conter-se, em homenagem à lógica da separação de poderes, não intervindo, de forma casuística, em decisões concretas da administração pública”. O PR entende mesmo que o decreto “pode ser politicamente contraproducente”. E, mais, considera que, neste tema, a actuação da Assembleia da República foi “excessiva e censurável”. Ao “vedar, taxativamente, qualquer participação de entidades privadas” nestas empresas, o Parlamento “condiciona, de forma drástica, a futura opção do Governo, em termos não condizentes com o propósito por ele enunciado e, sobretudo, a escolha das autarquias locais”, conclui.
“O veto traduz uma concepção diferente entre a Assembleia da República e o PR quanto ao papel do Estado e as responsabilidades deste perante a região e a sua a população. Não vemos razões para fazer qualquer alteração porque o Estado tem um papel importante para garantir a segurança e a mobilidade”, disse ao PÚBLICO Jaime Toga, da Comissão Politica do PCP. O dirigente comunista, que é também responsável pela Direcção da Organização Distrital do Porto do PCP, disse ainda “esperar que a Assembleia da República confirme a sua visão sobre a defesa do papel do Estado”, ainda mais quando este tem “os meios, as competências, as empresas, os trabalhadores, a capacidade instalada”.
No entanto, a julgar pela posição do PS, será difícil que o diploma a devolver a Marcelo não sofra afinações. Apesar de salvaguardar que o partido ainda “aguardava a leitura do conteúdo do veto”, Luís Moreira Testa, coordenador do grupo parlamentar do PS na comissão de Economia, garantiu que o partido “encontrará sempre uma forma de corresponder às preocupações do PR, embora também queira fazer valer a sua posição de fundo sobre a matéria”. Confrontado com a posição do PCP, o deputado salientou que “a Assembleia da República não pode ver as suas competências diminuídas por causa de concepções diferentes da sociedade”, mas não deixou de afirmar que é preciso “procurar um entendimento” relativamente às dúvidas levantadas por Marcelo. “Admito que possa haver aqui uma aproximação”, rematou.
A meio caminho está o Bloco, que recebeu a notícia “com alguma surpresa” porque “é o segundo veto político e este quando, dois dias antes, o PR afirmou que não existia nenhum factor de instabilidade que perturbasse a vida política nacional”. O deputado Heitor de Sousa frisou que o reforço do papel do Estado nos transportes públicos “foi um dos pontos em que se baseou a constituição da actual maioria política”, estando plasmado nos acordos selados à esquerda que permitiram a formação do Governo PS. O bloquista destacou ainda o facto de Marcelo se referir à actuação “excessiva” do Parlamento. “Diria que invoca um argumento excessivamente ideológico”, reagiu, recordando que a visão defendida no veto “era a do anterior Governo” PSD/CDS.
Sobre potenciais alterações ao diploma agora chumbado, Heitor de Sousa começou por afirmar que os partidos “deverão confirmar o que foi acordado”, quando devolverem o decreto à Presidência da República porque não têm de “ir ao encontro da ideologia do PR”. Mas acrescentou depois que “pode haver um ou outro detalhe” que possa vir a sofrer mudanças, quando confrontado com as posições díspares do PCP e do PS. “Temos de aguardar essa ginástica literária do PS para podermos tomar decisões em concreto, mas não estou a ver à partida o que se possa fazer”, afirmou, assegurando ainda que, a haver alguma “dificuldade em termos do processo político, está a ser criada pelo PR”.
Os três partidos proponentes vão ter agora de decidir se fazem alterações ao diploma. Se o fizerem, o decreto volta para a Presidência da República para promulgação. Se confirmarem o texto tal como está, é preciso garantir uma maioria absoluta de deputados para que as alterações avancem. Neste caso, Marcelo Rebelo de Sousa terá de promulgar o diploma no prazo de oito dias. A dificuldade agora será mesmo concertar posições entre o PS, o PCP e o Bloco.