Quando Vidal e Buckley abriram a caixa de Pandora
O documentário Best of Enemies enquadra os debates televisivos de 1968 entre um comentador republicano e outro democrata como o início da “guerra cultural” que hoje atravessa a paisagem mediática americana.
É instrutivo olhar para as eleições presidenciais americanas como grandes espectáculos para encher o olho — sobretudo num ano em que a convenção do Partido Republicano parece ser feita precisamente à medida da cobertura mediática global, com um candidato que parece definir-se inteiramente pela aparência e pela superfície mais do que pelo (inexistente) conteúdo. É, por isso, muito boa ideia olhar para Best of Enemies. O documentário de Morgan Neville e Robert Gordon, que nunca chegou às salas portuguesas mas se encontra disponível no serviço de streaming Netflix, recua até ao “momento zero” em que se abriu a caixa de Pandora: um 1968 onde a televisão era entendida como fonte idónea e imparcial de informação, o “grande centro” à volta do qual a população americana se reunia, medida pela confiança na “autoridade” de gente como Walter Cronkite, o lendário pivot da CBS, ou de Edward R. Murrow, o jornalista da CBS que se ergueu contra a caça às bruxas do McCarthyismo. A chegada de Gore Vidal e William Buckley aos écrãs da ABC nesse ano como analistas das convenções partidárias presidenciais que decorreram com duas semanas de intervalo veio alterar os dados significativamente.
Ao colocar um conservador (Buckley) contra um liberal (Vidal), republicano contra democrata, os responsáveis da ABC abriram as portas da informação televisiva em sinal aberto ao “ponto/contraponto” que hoje é “moeda corrente” em todos os meios de informação, que atinge o seu zénite com as “câmaras de eco” dos nossos dias que parecem apenas pregar aos convertidos, da conservadora Fox News (também ela em convulsões devido às acusações de assédio sexual feitas ao seu presidente, Roger Ailes) à liberal MSNBC.
O paradoxo é que os dois homens que deram início a essa deriva polarizante tinham uma estatura intelectual e um peso que muito dos seus “sucessores” não têm: dois representantes das elites patrícias americanas, nascidos no mesmo ano. Pelos republicanos, William F. Buckley (1925-2008), considerado por muitos o intelectual público mais importante do movimento conservador americano no século XX, católico praticante, candidato perdedor à presidência da Câmara de Nova Iorque, editor da revista National Review. Pelos democratas, Gore Vidal (1925-2012), escritor, comentador iconoclasta, candidado frustrado ao Congresso americano, e homossexual.
Em 1968, as suas reputações estavam no zénite — Vidal, autor de uma série de aclamados romances históricos, tinha acabado de publicar a sátira escandalosa Myra Breckinridge, e Buckley apresentava desde 1966 o programa televisivo de debate Firing Line. A ideia de os fazer “colidir” em horário nobre durante as convenções partidárias em Agosto de 1968, decorrendo em Miami Beach (republicanos) e Chicago (democratas), tinha tanto de oportunista como de inspirado para uma ABC que não se conseguia impôr face à concorrência e não tinha sequer dinheiro para cobrir na íntegra as convenções. A tese do filme de Morgan Neville e Robert Gordon, bem defendida e sustentada por depoimentos de biógrafos, jornalistas, executivos, comentadores e familiares e imagens de arquivo, é que esses debates cristalizaram o ponto em que a América abriu portas à “política da identidade”, em que a batalha de ideologias entre o conservadorismo e o liberalismo se tornou numa batalha de culturas.
O rastilho foi aceso quando Vidal, indignado pela violência policial nas ruas de Chicago, chamou a Buckley “cripto-nazi” e este, perdendo a compostura, lhe chamou “maricas” e o ameaçou fisicamente; num momento de que Buckley, aliás, se arrependeria ao longo dos anos, o feudo entre duas visões do mundo estava aberto e nunca mais desapareceria. As audiências da ABC dispararam, a CBS e a NBC prestaram atenção e instalaram os seus próprios comentadores, e a ideia de “praça pública” ou de “ágora” civilizada onde as pessoas discutiam os temas do momento começou a desaparecer para ceder lugar ao espectáculo da batalha de argumentos, que não raras vezes desce ao ataque pessoal mais ou menos baixo.
Naquelas primeiras intervenções, feitas há quase meio século por gente de estatura intelectual inquestionável e com provas dadas, consegue ver-se o futuro. Não é certamente por acaso que muito se tem falado, nos últimos dias, de tudo o que rodeia a corrida à Casa Branca em 2016 remeter para esse ano de 1968 em que a América se encontrava culturalmente dilacerada — a dimensão polarizada do país, nesses anos de Vietname, Panteras Negras e violência policial, espelha-se hoje nos conflitos do Médio Oriente, no movimento #BlackLivesMatter, no terrorismo islâmico e na violência policial.
Vidal e Buckley acreditavam que o país estava em crise, e que tinham respostas pensadas para essa crise, mas escorregaram quase sem dar por isso para uma dimensão de confronto polarizado e personalizado que, no surpreendente momento de troca de insultos, tornou permissível a dimensão do espectáculo e quase ejectou a discussão da ideologia subjacente. Basta ver como a convenção doPartido Republicano que agora termina tem sido marcada mais pelo constante fact-checking das declarações feitas do pódio ou pelo “contar de espingardas” de quem está com ou contra Donald Trump, do que pelo debate sobre aquilo que está verdadeiramente em causa na candidatura do magnata do imobiliário.
Em 1968, Vidal e Buckley pensavam estar a debater visões do mundo. Ao aceitar o convite da ABC, acabaram por abrir as portas à “televisão em movimento”, e a um mundo onde nenhum deles, pensadores até ao fim, certamente se reveria.
Best of Enemies pode ser visto online em streaming no serviço Netflix