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Duas literaturas à espera de encurtar um oceano

As dificuldades de comunicação entre autores portugueses e brasileiros transformaram-se em oportunidades num debate na Fundação José Saramago, em Lisboa.

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Joana Bértholo, Mariano Marovatto, Djaimilia Pereira de Almeida e Flavio Cafiero no Transatlântico - Encontro literário entre Brasil e Portugal Fundação José Saramago/DR

Flavio Cafiero leu um excerto de Esse Cabelo, de Djaimilia Pereira de Almeida, que leu um poema de Mariano Marovatto, que leu Diálogos do fim do mundo, de Joana Bértholo, que terminou o conjunto de leituras com O frio aqui fora, de Flavio. Poderia ser mais uma adaptação do poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade, que inspirou figuras como Chico Buarque, mas foi o Transatlântico - Encontro Literário entre Brasil e Portugal, que juntou escritores de língua portuguesa num debate moderado por Isabel Lucas, crítica literária do PÚBLICO, esta terça-feira, na Fundação José Saramago, em Lisboa.

Seria de esperar que dois países como Portugal e Brasil, que partilham uma longa e estreita relação histórica e linguística, cultivassem um bem-sucedido diálogo entre as suas literaturas e escritores. Se é verdade que ainda há um grande desconhecimento mútuo e um quase inexistente hábito de procurar leituras do outro lado do oceano, o leque variado de sotaques e vocábulos pode ser fonte de uma maior comunhão de sotaques, ritmos, métricas e fonéticas entre as duas literaturas.

Escrever a mesma língua em países diferentes carrega, automaticamente, uma distância que se impõe pela cultura de cada um. Segundo o brasileiro Flavio Cafiero, as diferenças podem ser um acréscimo em vez de um obstáculo. “Embora a língua seja a mesma, o ritmo e a pronúncia são outros e isso é uma delícia”, disse. O escritor partilhou, ainda, a história de uma altura da sua vida em que lia muitos autores portugueses e uma professora sua notou que a sua leitura e escrita estavam a ser influenciados “nas vírgulas, no estilo, em tudo”.

A geografia da língua é, também, uma influência no próprio processo da escrita. Mariano Marovatto veio do Brasil para Lisboa há um mês e já nota uma evolução entre o trabalho que produz e a relação espaço-tempo. “Os poetas portugueses escrevem muito mais que os brasileiros, e isso tem a ver com a calma de leitura e de pensamento que há aqui”, afirma.

Crescer em Portugal significa ter, desde criança, uma grande convivência com a musicalidade do português do Brasil falado, quer porque é comum assistir a telenovelas brasileiras ou porque a música popular daquele país tem um grande espaço no nosso. Talvez por isso Djaimilia Pereira de Almeida, luso-angolana que cresceu em Lisboa, nunca tenha sentido a distância. “Ouvi várias maneiras de falar português desde pequena, sempre senti uma grande proximidade”.

Pode dizer-se que há um “contágio” da cultura brasileira em Portugal, como nota a portuguesa Joana Bértholo. Inspirada por nomes da literatura brasileira como Clarice Lispector e Rubem Fonseca, Joana realça a “riqueza poética de músicos como Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque”, que encerram nas suas canções "variadas estruturas rítmicas e linguagens."

Se, por um lado, Mariano Marovatto refere que “escritores como José Saramago, António Lobo Antunes, Valter Hugo Mãe e Gonçalo M.Tavares até são bastante lidos no Brasil”, o “contágio” é maioritariamente unilateral e não tem a mesma força no sentido Portugal-Brasil. Quem o diz é Manuel Alberto Valente, director da Porto Editora, que chamado a intervir desde a plateia referiu que “o olhar interessado do Brasil sobre Portugal é recente”, reconhecendo que “as editoras têm mais em conta a rentabilidade que o trabalho cultural que fazem.”

Com o surgimento dos novos media e da Internet, lançar um livro não é uma tarefa que valha por si só. Cada vez mais se levanta a necessidade de o escritor falar uma língua universal que lhe permita estabelecer uma relação mais próxima com o público. Djaimilia Pereira de Almeida gosta muito de ver as conferências dos seus escritores favoritos na Internet, mas teria dificuldade em participar em eventos do género. “Faz-me confusão que o escritor tenha que fazer isso”, diz. Joana Bértholo concorda, pois acredita que “ao escritor compete escrever, mas a relação com o leitor depende da sensibilidade de cada um. Basta vermos o fenómeno da Elena Ferrante.”

Flavio Cafiero diz que são muitas as pressões do mercado e exemplifica com o pedido que algumas editoras chegam a fazer para que “os escritores brasileiros escrevam mais à americana, para que o argumento possa ser vendido para um filme”. Além disso, reitera que “ainda há muito para descobrir" na literatura brasileira.

É aí que entra a Internet e, sobretudo, a preponderância das redes sociais. Joana Bértholo recorda que lhe chegou, uma vez, um pedido de autorização para a criação de uma peça baseada numa obra sua em Minas Gerais, sendo que não é uma autora publicada no Brasil. “O feedback tem um valor inestimável, porque a escrita é um ofício solitário e fica caro levar e trazer autores.”

Pouco a pouco, as barreiras fragilizam-se e estão mais próximas de ser quebradas. É preciso promover mais encontros entre Portugal e o Brasil, tanto na Internet como na vida real, pois só o testemunho de leituras, palavras e sotaques diferentes pode estender e unificar o espaço literário lusófono.  

 

Texto editado por Isabel Coutinho

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