Mais de 2,5 milhões de pessoas foram infectadas com o vírus da sida em 2015
Revista The Lancet HIV divulgou esta terça-feira relatório sobre VIH no mundo desde 1980 até 2015. O travão na diminuição de novas infecções registado na última década é uma das maiores preocupações. Portugal aparece entre os países da Europa com mais novos casos no ano passado.
Há menos pessoas a morrer com VIH e, por isso, existem hoje mais pessoas a viver com a infecção no mundo. O acesso às terapias anti-retrovirais aumentou consideravelmente mas, por outro lado, a queda das novas infecções estagnou na última década em 2,5 milhões por ano. Portugal aparece na curta lista de países da Europa com o número mais elevado de novas infecções em 2015, com uma estimativa de 2220 novos casos. O relatório da revista The Lancet HIV sobre o vírus da sida no mundo foi divulgado esta terça-feira e, tudo pesado na balança, mostra que será muito difícil (para não dizer impossível) cumprir a meta global de controlar esta epidemia em 2030.
A revista apresentou o Global Burden of Disease 2015 (GBD 2015) com um retrato completo sobre o VIH em 195 países, desde 1980 até 2015, num encontro internacional sobre sida que decorre em Durban (África do Sul). No estudo com dados, estimativas e previsões, que foi coordenado por especialistas do Instituto para a Métrica e Avaliação da Saúde (IHME, na sigla em inglês), da Universidade de Washington (EUA), com uma vasta rede de colaboradores, há boas e más notícias. Um dos dados mais desanimadores do relatório é a linha direita que mostra que a queda de novas infecções estagnou nos 2,5 milhões de casos por ano durante a última década. Entre 1997 e 2005 as novas infecções diminuíam 2,7% por ano e de 2005 a 2015 a queda ficou-se pelos 0,7% por ano. Pouco para um mundo que quer eliminar a epidemia da sida em 2030.
E, neste capítulo menos feliz do documento, Portugal merece destaque pelos piores motivos. Segundo as estimativas do relatório, Portugal teria mais de 115 mil pessoas a viver com a infecção em 2015 e encontrava-se no grupo de países da Europa com o número mais elevado de novos casos registando 2220, ultrapassado apenas pela Rússia (57.340), Ucrânia (13.490) e Espanha (2350). Logo atrás de Portugal surge o Reino Unido (2060), a Itália (1960) e a Alemanha (1760). Ao lado destas previsões, o relatório nota que, em 2014, foram diagnosticados em Portugal 920 novos casos. Porém, os valores apresentados para Portugal não coincidem com os dados oficiais que têm sido divulgados pelas autoridades de saúde. Por um lado, no mais recente relatório do Programa Nacional para a Infecção VIH/sida está registado que em 2014 foram notificados 1220 novos casos de infecção em 2014. Por outro, no que se refere ao número de pessoas a viver com a infecção, os dados mais actualizados são referentes também a 2014 e ficam-se por uma estimativa de 45 mil pessoas, menos de metade da previsão agora divulgada pelo IHME.
Os dados oficiais foram apresentados este ano pelo então coordenador do programa nacional, António Diniz (que em Junho foi substituído por Kamal Mansinho) e que, em declarações ao PÚBLICO, afirmou que estes valores são aqueles que reflectem a realidade actual e foram obtidos através do uso de uma ferramenta de cálculo especificamente para HIV disponibilizada pela Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças (ECDC, na sigla em inglês). Sobre a discrepância com o artigo dos especialistas do IHME, António Diniz mostrou-se incrédulo com o valor médio apresentado neste estudo mas preferiu não comentar por desconhecer o artigo e os métodos usados.
Porém, José das Neves, cientista do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (I3S, no Porto) que colaborou no estudo do IHME, explica que a estimativa de 115 mil pessoas a viver com o VIH em Portugal é uma média e que tem um intervalo de confiança considerável, entre os 32 mil e os 263 mil casos. Ou seja, aponta ainda, se considerarmos a baliza inferior, os números aproximam-se. "É preciso ter algum cuidado com estes valores. Há um grande grau de incerteza. Por outro lado, também sabemos que os dados para o VIH, seja dos vários países ou do UNAIDS [Programa das Nações Unidas sobre VIH/sida], estão subestimados. Em Portugal e em todo o mundo", refere o investigador que participou na recolha e análise da informação sobre Portugal no relatório. Sobre o cálculo usado para as estimativas, José das Neves refere que o algoritmo aplicado "é superior aos existentes, mais refinado, com mais fontes e mais diversificadas". "O que explica algumas surpresas", diz, sublinhando que mais importante do que acertar em cheio na estimativa é perceber que há aqui "um alerta, sem alarmismo". "O que se conclui é que é preciso fazer mais e melhor para conseguir acabar com a epidemia da sida."
Num plano mais global, o estudo na The Lancet HIV refere que, apesar da tendência geral de decréscimo, entre 2005 e 2015 houve 74 países que aumentaram a taxa padronizada pela idade de novas infecções de VIH. O GBD 2015 revela ainda que o número de pessoas a viver com VIH no mundo tem vindo a aumentar, passando de 27,96 milhões em 2000 para 38,8 milhões em 2015. As mortes por VIH/sida têm caído a um ritmo estável, situando-se nos 1,2 milhões em 2015, quando em 2005 chegavam aos 1,8 milhões. É uma boa notícia que está relacionada com outro ponto positivo que é o aumento das pessoas com VIH que estão a fazer terapias anti-retrovirais e que, segundo o relatório, deu um salto significativo desde menos de 2% em 2000 até aos 41% em 2015. Um progresso que, no entanto, ainda deixa o mundo muito longe da meta dos 81% definidos para 2020. Os países mais perto dessa meta são a Suécia (76%) e os EUA, Holanda e Argentina (todos com cerca de 70%). De acordo com o GBD 2015, em Portugal 60,5% das pessoas diagnosticadas com VIH estão a fazer terapias anti-retrovirais. Um relatório recente do Observatório Português dos Sistemas de Saúde alertava para a elevada proporção de infectados que não têm tratamento com terapêutica anti-retroviral em Portugal (17,2%, o correspondente a 4575 pessoas), superior à que se encontra noutros países europeus.
“Apesar do aumento da cobertura das terapias anti-retrovirais e das medidas adoptadas para prevenir a transmissão entre mãe e filho, que tiveram um enorme impacto no que se refere a salvar vidas, estes dados apresentam a imagem preocupante de um lento progresso na redução de novas infecções de VIH nos últimos dez anos”, resume Haidon Wang, investigador do IHME e principal autor do relatório na The Lancet HIV. O director do IHME, Christopher Murray, reforça o alerta e frisa que “ainda que mais pessoas estejam a viver com VIH, não vamos conseguir acabar com a sida se não pararmos as novas infecções”.
E para complicar ainda mais esta difícil tarefa de combate ao VIH/sida há menos dinheiro disponível. Depois de um aumento da ajuda pública para a saúde entre 2000 e 2009, este financiamento estagnou a partir de 2010. Um estudo publicado em Abril pelo IHME já assinalava que o financiamento anual global para VIH/sida atingiu um pico e 11.200 milhões de dólares (10.160 milhões de euros) em 2013 mas caiu para os 10.800 milhões em 2015 (9800 milhões de euros).
Tudo somado, o estudo divulgado esta terça-feira mostra claramente, tal como sublinha Peter Piot, director da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres e um dos fundadores do UNAIDS, que “a epidemia da sida não acabou de forma alguma e que o VIH/sida permanece uma das maiores ameaças de saúde pública do nosso tempo”.