Dois magníficos concertos em São Pedro de Rates
Na emblemática Igreja românica de S. Pedro de Rates decorreram dois magníficos concertos que confirmam a elevada qualidade musical da 38.º edição do Festival Internacional de Música da Póvoa de Varzim.
Sediado em Santiago de Compostela e liderado por Fernando Reyes (instrumentos de corda dedilhada) e Mercedes Hernández (canto), o ensemble Resonet integra ainda os músicos Paulo González (instrumentos de sopros e sanfona) e Carlos Castro (instrumentos de percussão). O grupo, que se dedica à interpretação de música antiga relacionada com os Caminhos de Santiago, apresentou neste concerto na Igreja românica de S. Pedro de Rates integrado na 38.º edição do Festival Internacional de Música da Póvoa de Varzim um programa exclusivamente dedicado à música trovadoresca galaico-portuguesa dos séculos XIII e XIV.
A interpretação de cantigas galaico-portuguesas acarreta um conjunto de condicionantes e de desafios que exigem abordagens distintas daquelas empregues na interpretação de música erudita de períodos posteriores. Em primeiro lugar porque em grande parte das cantigas que chegaram aos nossos dias sobreviveram (ou foram notados) apenas os poemas, desconhecendo-se a música a eles associada. Mas até nos casos em que a música é conhecida, a sua notação limita-se à melodia, sem indicação clara do ritmo ou dos padrões métricos em que esta se baseia, sem referência aos instrumentos que a executam, nem às possibilidades de variação e de ornamentação a que elas estavam sujeitas. Felizmente existem diversos exemplares de cantigas com notação musical genuína que servem de modelo para a recriação ou composição moderna deste repertório, nomeadamente através da adaptação de melodias de outras cantigas aos poemas que não têm música associada – método designado por música “contrafacta”.
O programa que o ensemble Resonet apresentou em Rates foi neste sentido diversificado e abrangente, pois incluiu interpretações e improvisações sobre cantigas originais, mas também música contrafacta, enriquecendo deste modo o extraordinário legado da música e da poesia galaico-portuguesa.
O alinhamento do programa obedeceu a critérios poéticos (tais como afinidades de conteúdo) e musicais (nomeadamente na escolha dos modos e da instrumentação). Os quatro músicos revelaram grande cumplicidade num concerto rico e variado no estilo interpretativo e nas combinações dos timbres instrumentais. Tal como referido por Fernando Reyes cada instrumento sugere determinados modos de execução que influenciam o estilo interpretativo. Quanto à interpretação vocal, Mercedes Hernández demonstrou grande capacidade expressiva através de adequados cambiantes de registo e também de uma cuidada ornamentação melódica. É ainda digno de realce o facto deste concerto ter sido precedido pelo lançamento oficial do disco Cantiga – Trobadores de Galiza e Portugal, gravado por este grupo na Igreja de São Pedro de Rates em Dezembro de 2015.
Com um programa aliciante para o público e extremamente exigente para o intérprete, o concerto de Pavel Gomziakov também na emblemática Igreja românica de S. Pedro de Rates revelou um violoncelista de enorme entrega e maturidade musical. A performance do músico russo, assente numa enorme solidez técnica e extraordinária capacidade expressiva, deslumbrou pela originalidade interpretativa das Suites de Johann Sebastian Bach e de Benjamin Britten.
O recital iniciou com a 1.ª Suite para violoncelo de J. S. Bach, à qual Gomziakov imprimiu um interessante sentido dramático, sublinhando simultaneamente o carácter próprio de cada um dos movimentos de inspiração corográfica que a constituem.
Compostas para Mstislav Rostropovich as Suites de Benjamin Britten são igualmente um marco na literatura para violoncelo, pelos muitos desafios técnicos e interpretativos que colocam ao intérprete. Num discurso musical manifestamente sensível à herança bachiana, Britten surpreende pela perfeita aliança entre a tradição e a modernidade, mas também pela capacidade de invenção temática e pelo seu empenho em explorar e alargar as possibilidades técnicas e expressivas do violoncelo. A Suite nº 3 consiste em dez secções contrastantes (como se de uma suite barroca se tratasse) que apresentam fortes afinidades temáticas, assemelhando esta suite a um conjunto de variações sobre um grupo restrito de temas. Gomziakov interpretou cada nota, cada gesto e cada frase com invulgar rigor e sentido musical, sem descurar o equilíbrio formal da obra na sua globalidade. O violoncelista demonstrou ainda uma impressionante capacidade sonora, oscilando entre sonoridades de grande subtileza – por exemplo na Introduzione e no Recitativo – e sonoridades poderosas como se estivesse a interpretar um concerto com orquestra – nomeadamente na Fuga.
Na segunda parte, após executar a Chaconne da Suite nº 2 de Britten, Gomziakov concluiu o recital com aquela que é a mais difícil das suites de Bach. O elevado grau de dificuldade da Suite nº 6 (sobretudo para a mão esquerda, que executa posições difíceis e praticamente sem repouso) fazem desta obra um grande desafio para os violoncelistas. Gomziakov guardou-a para o final do recital, proporcionando momentos de extraordinário virtuosismo e de imaculada beleza musical. Destaco a Sarabande, que se transfigurou numa verdadeira ária sem palavras (mas plena de emoções e de sentido!), tal foi a capacidade lírica do intérprete, que fez jus à semelhança do seu instrumento com a voz humana!...