O presente insustentável dos Massive Attack e a fúria intemporal de Iggy Pop
Os Massive Attack confrontaram-nos com a violência e o absurdo do mundo, hoje. Iggy Pop mostrou porque é, aos 69 anos, o presente e o futuro do rock'n'roll. Duas lições importantes no segundo dia de Super Bock Super Rock.
No ecrã está o mundo como o olhamos hoje. Os zeros e os uns dos códigos binários. A sucessão de notícias que não interessam verdadeiramente a ninguém, mas se a curiosidade matou o gato, então o humano quererá saber o que andou Carolina Patrocínio a fazer na praia. Isso misturado com uma outra sucessão, a das notícias que nos dão conta do que muda verdadeiramente no mundo das pessoas que vivem e que morrem.
Como muda o mundo freneticamente, como se sobressalta num vórtice que entontece, da tragédia de há dois dias – “Dedicado a todas as vítimas dos trágicos e incompreensíveis acontecimentos em Nice”, lemos no ecrã em determinado momento – à tentativa de golpe de Estado na Turquia, que acontecia no preciso momento em que os Massive Attack, são eles que tocam enquanto vemos o que descrevemos, estão no Meo Arena enquanto cabeças de cartaz do Super Bock Super Rock, sexta-feira.
A banda de Bristol representou, ou melhor, comentou, complexificou, dramatizou o presente como nenhuma outra banda naquela noite. Escondida sob as luzes baixas do palco, iluminada pela luz que emanava do ecrã, fez da sua música ora narcótica, adocicada a dub, ora convulsiva, de ritmo cortante e guitarra a dardejar, um poderoso manifesto. “Estamos juntos”, leu-se sob os retratos de refugiados que acompanharam o clássico Unfinished sympathy, cantado por Deborah Miller no final do concerto. Estamos (inevitavelmente). Temos de estar (esperançadamente).
Há concertos bons e há concertos maus. Há concertos deslumbrantes e há concertos importantes. No segundo dia de Super Bock Super Rock, os Massive Attack reuniram estas duas últimas qualidades. Tiveram com eles os Young Fathers, o recente e óptimo trio hip-hop escocês, e recuaram ao início da história, a sua, visitando o histórico Blue Lines lançado em 1991. Mas não foi um concerto de revisita nostálgica e não foi um concerto de actualização da história. No Meo Arena demos de caras com o presente, sem hipótese de escapar. Foi angustiante. Foi inspirador. Foi, repetimos, importante.
Horas antes (o concerto começara perto da meia-noite), no mesmo cenário, todo um outro fenómeno. As calças de ganga coçadas e o tronco nu. As veias salientes descendo desde o ombro, as rugas no rosto, o corpo arqueado sobre a anca direita. Iggy Pop, 69 anos, atacando o palco sem qualquer desejo de fazer prisioneiros. Primeiro No fun, naquele riff metralhado. I wanna be your dog logo a seguir, canção urgência, amor feito obsessão doentia, canção furacão: “well, come on” – e fomos, e à segunda canção o público já vivia em alvoroço pela energia do momento, saltando tão feroz quanto feliz. E depois vem Passenger e Iggy há-de pedir à banda que reduza o volume para que o coro da multidão se faça ouvir. Não pára aí. Chega o balanço irresistível de Lust for life e, consequentemente, não há como resistir – ainda insaciável passados todos estes anos.
Há algo de quase heróico em tudo aquilo, uma altivez que se impõe enquanto aquele corpo seco e naturalmente envelhecido corre pelo palco, corre pelos corredores junto ao público, golpeia o ar e volta a pegar no microfone para cantar a fantasmagoria eléctrica de 1969, para cantar a lascívia de Sweet sixteen, para atacar o ritmo rockabilly de Real wild child ou, sentado numa cadeira em pose de bad boy, dar vida ao blues rock assombrado de Nightclubbing.
Um concerto de Iggy Pop, este concerto de Iggy Pop do qual esteve praticamente ausente o seu inspirado presente de Post Pop Depression, mostrou-nos uma vitalidade que permanece intocada. A atmosfera densa, tétrica, de Mass production daria lugar já no encore à detonação de Search and destroy. Iggy está de braços erguidos no ar e a banda já abandonou o palco. Queda-se ali, só com a multidão que o aplaude e que o homenageia, que o vê numa última pantomima, batendo com os punhos no peito, antes de se despedir. Deve ser qualquer coisa assim: Eu vi o passado e o futuro do rock'n'roll e ele ainda se chama Iggy Pop.
Um espalha-brasas ao calor
Naquela altura, o dia já ia longo. Sob o calor abrasador que chegou esta semana, vivia-se um Super Bock Super Rock que, à segunda edição na área do Parque das Nações circundante do Meo Arena, parece ter-se harmonizado com o espaço que ocupa. Lá em baixo, no palco Antena 3, os Pista, acompanhados por Alex D'Alva Teixeira, fazem a festa com o seu afro-beat que rocka infernizado. Apreciam-no quer aqueles que se agitam frente ao palco, quer aqueles que batem o pé na escadaria, aproveitando a brisa refrescante vinda do Tejo. Entre um ou outro cântico de louvor à selecção campeã europeia, a nossa, e ao novo herói Éder, o maior – continuámos a ouvir os cânticos, felizes e espontâneos, dia e noite fora –, descobria-se sob a pala do Pavilhão de Portugal, que acolhe o palco EDP, o sul-africano Petite Noir, nascido Yannick Ilunga. Titubeava entre highlife feito rock e dramatismo Bauhaus, entre o prazer da boa dança e a tentação do refrão pop sem assinatura discernível.
Algum público conhecedor nas filas da frente, outro observando o lago artificial que rodeia o Oceanário, outro ainda descansando sentado na sombra, provavelmente pensando, como nós pensamos, que ao vivo Down soa estranhamente próximo, de uma forma não particularmente inspirada, a uma imaginária aventura africana dos britânicos Bloc Party. Banda que, às 20h30, inaugurou a actividade do dia no palco principal com um concerto em que a matéria recente serviu para enquadrar êxitos de outrora como Mercury ou Banquet, momentos de fugaz agitação no concerto de um grupo que parece ter perdido o seu momento – enquanto isso, os barcelenses Glockenwise mostravam no palco Antena 3, perante público escasso mas entusiasta, a receita certa para que o rock'n'roll exerça o seu efeito: criam-se canções com esmero de compositor empenhado e, depois, toca-se com uma urgência que nos leva a concluir que a vida daqueles quatro depende disto, de estar em palco a tocar as ditas canções, indiferentes a serem dez, cem, mil ou dez mil as pessoas na plateia.
Um dia antes do muito aguardado concerto de Kendrick Lamar, responsável pela bilheteira esgotada no derradeiro dia de festival, no sábado, os Rhye ofereceram no palco EDP o seu downtempo pintalgado de jazz e soul à minoria que preferiu calmaria ao furacão Iggy – outra minoria esteve com os Capitão Fausto no palco Antena 3. Depois dele, Mac DeMarco, ainda em estado em graça, ainda adoravelmente espalha-brasas (e acompanhado de banda em sintonia), fez-se um com o público que lhe sorve o romantismo pop e o gentil tremeluzir da guitarra. Uma ambivalência que nunca deixa de fascinar. Porque aquele homem e aquela banda que toca as canções desse solar e discretamente nostálgico Salad Days são os mesmos que pegam numa garrafa de cerveja de tamanho XXL e a vão emborcando entre gargalhadas enquanto Mac DeMarco e o baixista enfiado num vestido florido, desajeitado, trocam piadas alarves entre si – exemplo avulso: “obrigado por nos receberes, Super Cock." Tem piada a descarada naturalidade de tudo aquilo. Tem piada porque existe o outro lado.
“Cavalitas, já”, ordena ao amigo surpreendido a rapariga que irrompe sabemos lá de onde. Instalada nos ombros do rapaz, junta-se com ele ao coro de Together. A voz de Mac sobe àquele abençoado rodriguinho nos agudos que marca o refrão, toda a gente canta com ele, no ecrã gigante vê-se um cartaz erguido para todos verem – “togÉDER” – e não há lugar para cinismos ou outros constrangimentos. Por “culpa” de Iggy, perdemos dois terços do concerto, mas parece mesmo verdade. Mac DeMarco tem as canções certas e é um gerador automático de empatia. Mesmo que o som no palco sob a pala, como é infelizmente habitual, não seja o melhor, há uma geração a cantar com ele. A sensação de diversão enriquecedora, porém, não tardaria a dar lugar a outra.
Os Young Fathers são chamados a palco. O trio escocês junta-se aos Massive Attack. Tocarão Voodoo in my blood, a canção que gravaram juntos em Ritual Spirits, o EP editado de Janeiro. Mostrarão solenidade gospel e activismo hip-hop. Tensão urbana na poderosa Shame, com as vozes crescendo em conjunto enquanto os graves percorrem a nossa caixa torácica.
Nos ecrãs, continuamos a assistir ao absurdo da vida que salta de flash noticioso em flash noticioso, sem hierarquia: a guerra mortífera no Sudão do Sul, qualquer coisa insignificante que aconteceu a uma actriz, Portugal campeão europeu, o cão que faz um malabarismo que temos mesmo de ver, o “Brexit” e suas consequências. Ouvimos o que vemos, vemos o que ouvimos. Som, imagem e palavra. Um concerto exemplar.
Ouvimos Safe from harm, o clássico do clássico Blue lines, aqui cantada por Deborah Miller. Vemos a tenebrosa sucessão de Je suis, cada um deles aplaudido em movimento solidário – tenebrosa pela quantidade: Paris, Bagdad, Bangladesh, Bruxelas, quatro entre tantas mais. Nesta música multiforme e nocturna, ouvimos 3D e Daddy G guiarem uma banda. As duas baterias, o baixo, guitarra, teclas, sintetizadores, programações. Vemos o “Estamos juntos” inscrito no ecrã. O derradeiro refúgio. Sim, foi um concerto importante. Não sairemos incólumes dele.