E do nada Rita Lino, Pedro Maia e Paulo Furtado fazem tudo
How to Become Nothing, registo de uma viagem pelo deserto californiano para preparar o próximo disco de Legendary Tigerman, tornou-se num projecto multimédia autónomo com estreia no Curtas Vila do Conde.
Um homem à procura de desaparecer no deserto – é talvez uma das mais fortes imagens que identificamos com a paisagem e com uma certa ideia dos Estados Unidos da América. E não é por acaso que essa imagem serve de ponto de partida a um projecto multimédia que irá revelar-se e transformar-se ao longo de vários meses. “É a busca de um homem para tornar-se nada,” explica o realizador Pedro Maia. “Daí o deserto, a road trip, a procura, a experiência...” – “...de extremos, de calor, de escuridão”, completa a fotógrafa Rita Lino. “O que nos moveu sempre”, diz o músico Paulo Furtado, aliás The Legendary Tigerman, “foi esta ideia de que para os europeus a América, e qualquer coisa para onde apontes a câmara na América, tem alguma poesia": "Os momentos em que o Pedro escolhe irmos filmar a Zabriskie Point por causa do filme [homónimo] do Antonioni acaba por ser um roteiro daquilo que nos influencia”, concretiza.
How to Become Nothing é, então, o título deste work-in-progress assinado a seis mãos por Rita, Pedro e Paulo, resultante de uma viagem “bastante intensa” de 12 dias pelo deserto californiano, cuja primeira “iteração”, em modo filme-concerto improvisado entre o documentário e a ficção, é revelada em estreia ao fim da noite desta sexta-feira, 15, no Curtas Vila do Conde. Outras se seguirão à medida que How to Become Nothing for ganhando ritmo – uma exposição de fotografia, com imagens em movimento, música e textos; uma longa-metragem para o circuito de festivais, mais filmes-concerto, um livro que funcione como diário de rodagem mas também como “memória” do projecto.
Tudo isto começou, nas palavras de Paulo Furtado, do lado completamente oposto àquele em que acabou: um convite do músico ao casal (na vida real) formado por Rita e Pedro para criarem a parte visual do próximo álbum de Legendary Tigerman, que vai ser gravado no final do ano nos EUA. Um disco que, contudo, ainda não existe... “Queria começar o disco ao contrário, pelas imagens, pelas fotografias,” explica o músico. “Queria viver o espaço e usá-lo como inspiração para o disco.” Mas as coisas “viraram” muito rapidamente: o que começou por ser uma possível curta-metragem ou uma repérage para um disco futuro tornou-se um objecto completamente diferente ao longo dos primeiros meses de 2016. “Quando chegámos à América e comecei a escrever o diário que acompanha o filme, começámos a perceber que isto ia tornar-se outra coisa,” continua Furtado. “A “pescadinha de rabo na boca” do "disco que dá origem ao filme que se torna numa coisa autónoma que foge totalmente do disco" foi "muito inspiradora, musicalmente”.
Ao longo dessa viagem pela zona da Joshua Tree e Twenty-Nine Palms (“por causa da decadência do deserto, das cidades-fantasma, de quilómetros em que não há nada” segundo Maia) , Paulo Furtado foi escrevendo diariamente uma espécie de “mapa”. “Um diário inspirado pelos acontecimentos do dia anterior e pela expectativa para o dia seguinte”, com o músico a levantar-se antes dos seus cúmplices e a enviar-lhes pequenas mensagens de texto que viam, nas palavras de Rita, “ainda com um olho fechado”. Mas esse mapa estava permanentemente em fluxo, aberto quer ao acaso quer às rotinas, e esbatendo as fronteiras entre a verdadeira identidade do músico e a personagem que o filme estava a criar, que não era forçosamente nenhuma das máscaras que Furtado tem assumido ao longo da sua carreira. “O Pedro todos os dias ia filmar a minha rotina de manhã. Jogámos um bocadinho com essa parte da realidade, e na maior parte dos momentos acabei por não usar tanto as máscaras, porque isso já seria representação e não sou actor. Há coisas que são representação, há coisas que são reais.” Para Rita, tratou-se de “trabalhar com o Paulo enquanto artista", ou com a personagem que dele haviam criado na cabeça, e tentar adaptá-la à realidade dos três naquele momento. "O que me puxava sempre era como é que ele reagia à parte de intimidade num sítio tão desconhecido – eu procurava mais o pormenor, o acordar, o deitar, o comer...”.
Ao longo das três semanas, criou-se uma cumplicidade entre o trio que faz com que a experiência de levar How to Become Nothing a bom porto se tenha concretizado de modo extraordinariamente rápido – Pedro Maia diz nunca ter montado um filme em tão pouco tempo e sem que a montagem sofresse alterações de peso ao longo das várias versões. Em Vila do Conde, esta primeira iteração vê o cineasta manipular um “banco de imagens” e sequências dessa montagem em tempo real, reagindo à música interpretada ao vivo por Furtado. “O princípio, o meio e o fim estão pré-definidos, mas tudo o resto vai responder ao que o Paulo faz.” O passo seguinte será finalizar uma longa-metragem que deverá ficar pronta em Setembro para fazer o circuito mundial de festivais, acompanhado pela marcação de mais filmes-concerto, num projecto que o trio diz estar pensado a longo prazo e que se irá desenrolar ao longo dos próximos 12 meses. Nada mau para uma história sobre alguém que quer desaparecer e tornar-se nada.