O rap de Kendrick e o rock de Iggy
Duas personagens que são arquétipos – Iggy Pop do espírito do rock & roll e Kendrick Lamar do rap de consciência política – mas que são também personalidades densas e complexas. Os dois estão entre os destaques do festival Super Bock Super Rock que acontece de 14 a 16 de Julho, no Parque das Nações.
Um deles, aos 69 anos, é a incarnação viva do espírito do rock & roll. O outro, aos 29, é talvez a figura maior do rap contemporâneo. Iggy Pop e Kendrick Lamar serão duas das figuras de mais uma edição do Super Bock Super Rock, que acontecerá de 14 a 16 de Julho, no Parque das Nações, em Lisboa, e que contará com outros nomes relevantes como Massive Attack & Young Fathers, The National, Disclosure, Jamie xx, Kurt Vile, DJ Shadow, Rhye, De La Soul, GNR, Orelha Negra ou Kelela.
Numa altura em que a música se tornou omnipresente, ouvida em todo o lado, a toda a hora, com a quantidade a substituir-se tantas vezes à qualidade, é nos espectáculos ao vivo, acredita o público, que se estabelece uma relação mais empática com os artistas. Os concertos mais marcantes são sempre mais do que um espectáculo. São experiências de vida. Os grandes músicos nunca estão satisfeitos com a distância do público. Estão sempre a tentar estreitá-la. Fazem-no emocionalmente e por vezes fisicamente. Por isso experimentamos nos concertos excepcionais que aquela pessoa no palco pode saltar para a plateia, com o intuito de nos provocar ou abraçar, fazendo-nos sentir que aquela relação imposta inicialmente se pode quebrar a qualquer momento.
Apesar de virem de famílias estéticas diferentes e de pertencerem a gerações diversas, tanto Iggy como Kendrick possuem esse potencial, conseguindo comunicar intimidade de forma universal. Na adolescência, Iggy, em conjunto com Ron e Scott Ashleton formou os Stooges, expressando frustração através de uma música rock indomesticável. Eram contra a ordem instituída, faziam garage-rock e tinham muita raiva para manifestar. Hoje Iggy tem uma vida confortável, está bronzeado e vive na solarenga Miami. A sua música não se domesticou, mas ele está mais consciente do seu lugar, sabendo que a rebelião é muitas vezes absorvida por um mercado que pode ser triturador.
O dilema de Lamar é apenas na aparência diferente. No fim de contas, em ambos, o conflito é como manter a autenticidade, a espontaneidade e a suposta verdade que, inicialmente, expuseram. Depois do sucesso do primeiro álbum, Good kid, m.A.A.d City (2012), a existência de Lamar modificou-se. Se esse disco constituía um conto hiper-realista sobre o quotidiano problemático em Compton, o bairro onde cresceu, o seu disco posterior não poderia reflectir o mesmo tipo de experiências, depois de ter subido no elevador da fama.
Dir-se-ia que o segredo de ambos é manterem-se naquela linha indefinível onde se tocam o completamente consciente e o totalmente espontâneo. Em 2013 em conversa com o jornalista inglês Paul Trynka, que escreveu um livro sobre Iggy Pop (Open Up and Bleed, de 2008), e que foi o último biógrafo de David Bowie, este dizia-nos que se tende a olhar para o segundo como alguém teatral, que encarna personagens, e que Iggy tende a ser visto como sendo o oposto. Uma teoria que ele desconstrói.
“Iggy Pop nasceu James Osterberg, uma criança bem-falante, destinada a ter sucesso na escola e que foi para a universidade estudar antropologia”, contava. “O que quero dizer é que são mais parecidos do que as pessoas querem ver. Iggy é polido no trato, mas transforma-se em palco. Uma personagem, lá está. Uma personagem genuína, como Bowie também é.” Concluía: “Porque é que os músicos rock não podem encarnar um papel como os actores? Quando vamos ao teatro sabemos que em palco não está o verdadeiro Rei Lear. Seria ridículo que Iggy fosse selvagem fora do palco como é nele. Iggy e Bowie não são esquizofrénicos. São artistas, nada mais. São honestos quando estão em palco e fora dele, embora o sejam de forma diferente.”
Também Brian Eno, que privou com os dois, respondeu da seguinte forma quando lhe perguntaram se Iggy personificava a atitude selvagem do rock & roll?: “Selvagem?! Em palco, talvez. Fora dele é o tipo mais sensível que conheço, um cavalheiro.”
Agora, quase a fazer 70 anos, Iggy fala do novo álbum, Post Pop Depression, depois dos discos com The Stooges, como se representasse uma despedida. Pelo menos foi pensado e gravado como tal, na companhia de Josh Homme, o vocalista e guitarrista dos Queens Of The Stone Age. Não encontramos nesse disco o Iggy incendiário, mas há uma voz profunda e vivida e um cenário sonoro com rock quanto baste lá dentro a acompanhá-la.
Em Portugal iremos ver ao vivo alguém que já não acredita no poder transformador do rock & roll, mas que continua a crer, todas as noites, na exposição sem simulacros. Ou pelo menos fazendo-nos acreditar nela o que vai dar exactamente ao mesmo.
Há dois anos, em entrevista, dizia que, no final dos anos 1960, quando os Stooges irromperam em Detroit, “o rock ilustrava as lutas de classes e os conflitos raciais.” Provavelmente nos EUA, na actualidade, esse papel está reservado ao rap. Ou pelo menos, a algum rap. Como o de Kendrick Lamar que, nos últimos tempos, se transformou na voz da consciência afro-americana.
Ainda não é comum em Portugal ver figuras cimeiras do hip-hop americano serem cabeças de cartaz de festivais mais conotados com a cultura rock, embora esta seja a segunda vez para Lamar, depois de ter estado em 2014 no Primavera Sound do Porto. Nessa altura já era uma celebridade no mercado americano, embora na Europa ainda estivesse em ascensão, arrancando um concerto admirável. Agora surge com o estatuto reforçado, depois de o seu segundo álbum, To Pimp A Butterfly (2015), ter sido aclamado o ano passado e ter arrecadado inúmeros prémios.
Em 2014, em conversa com ele, dizia-nos que a sua vida estava inscrita no primeiro álbum: “é um auto-retrato”, dizia, “em que falo da minha relação com a cidade. Mas ao mesmo tempo é também sobre a vida de outras pessoas, porque é fácil haver um processo de identificação.” Depois desse disco a sua vida mudou. Adveio a fama. A competição. Controvérsias. E o seu segundo álbum teria naturalmente que reflectir uma nova realidade.
E assim aconteceu, revelando preocupações sociais e políticas, mostrando-se alguém capaz de nos devolver o seu universo íntimo e reflectindo ao mesmo tempo sobre as convulsões do presente de forma inteligível. Era um disco pós-tumultos em Ferguson. Se no disco anterior quase não saíamos de Compton, desta vez contava-se a si próprio, e à realidade social e política em seu redor, sendo tão vulnerável como irado, tão irónico quanto desconcertante na forma como se assume – chegando ao ponto de expor culpa por ter abandonado o seu bairro de sempre.
Mas ia mais longe, reivindicando o legado da cultura afro-americana, e incorporando na sua música influências do funk, jazz, soul ou spoken-word, num tributo a pioneiros como Gil Scott-Heron, George Clinton, Sly Stone, Marvin Gaye ou Curtis Mayfield, misturando abordagens classicistas e um sentido de futuro assinalável. Algo que se revela também ao vivo, onde se mostra um dos performers mais intensos da actualidade, acompanhado por uma banda que sabe dar balanço e espaço às suas palavras.
Um dos momentos fundamentais de um concerto é o fim. É nesse último acorde de guitarra, na última bancada da bateria ou no último grito lançado do palco que se decide o êxito da operação. É nessa reacção final que se condensam todas as emoções até aí vividas. Como se esse último suspirar pudesse constituir a súmula daquilo que até aí foi transmitido a partir do palco e sentido na plateia. Na próxima semana, no final do concerto de Iggy Pop e de Kendrick Lamar, dificilmente não pairará no ar um sentimento de dever cumprido a partir do palco e de satisfação na plateia.