E ao décimo-terceiro disco os Deerhoof voltam assinar um disco magnífico, repetindo um feito que vão tornando banal: o de, em cada aparição, se afirmarem como a melhor banda rock da actualidade. Como conseguem? O que têm de tão especial, pese embora a indiferença de tantos, que lhes garante essa proeza? Sabe-se que este The Magic foi gravado em sete dias num edifício devoluto em Albuquerque, Novo México, e que Greg Saunier (o prolífico baterista) descreveu assim o desejo da banda: recapturar a música de que gostavam quando eram miúdos; quando essa música era mágica, antes de saberem que, passada a adolescência, ela escondia a indústria, o dinheiro, as regras do lucro.
Ora, recuperar a inocência desse período é o que a banda de São Francisco tem feito desde 2001, com resultados que transcendem a impossibilidade aparente do feito. O espírito permaneceu sempre fiel ao rock and roll, mas os ouvidos nunca se fecharam a outros géneros musicais. Procurem guardas e fronteiras à volta do território que os Deerhoof desenharam com guitarra, baixo e bateria. Não encontrarão. Nele, o disco, a electrónica, a bossa-nova, o easy listening, o doo-wop ou o funk são, sempre, envolvidos num abraço amigável e contagioso. The Magic renova essa atitude inocente e generosa (alheia à indústria, mas não ao mundo e à história), conduzindo a banda num caminho singular e difícil de emular, muito por causa dos elementos que o sustentam: um sincretismo apoiado nos encontros musicais, a faculdade de fazer nascer algo novo, a memória viva de canções, músicos e bandas do passado, o trabalho de artesão como actividade comunicativa (para os outros), a pura magia do dom da composição. Dito assim, The Magic não traz nenhuma ruptura e é verdade. Os Deerhoof repetem-se, mas repetindo-se fazem emergir algo que ainda não tínhamos escutado.
The Devil And His Anarchic Surrealist Retinue, a primeira faixa, anuncia-se com a voz de Satomi Matsuzaki ( a palavra inaugural é the magic, pois claro) e um riff solto e acelerado. Numa série de saltos, paradoxos, descontinuidades, a imprevisibilidade domina. À velocidade segue-se uma paragem, à trepidação das cordas, um solo. Os Deerhoof param, recuam, avançam e nós com eles. Mas a harmonia e a beleza não desaparecem. Ponham os ouvidos em Criminals of the Dream, que as cordas do baixo libertam das notas de um teclado. Satomi cantará “It’s not right if everyone fights to dream at night…wondering where the magic hides”, flutuando, tranquila, entre os sons ou deixando-se elevar por eles. Antes de nos segredar, iluminada por um belíssimo e solidário acorde (como se este acudisse às palavras): “Dream you can dream... I know you can dream / Things aren’t as bad as they seem”.
Em Learning to Apologize Effectively, Saunier junta-se a Satomi e ambos chamam ao palco as guitarras dos AC/DC e dos Van Halen, para exorcizarem fragilidades e histórias comuns. É um momento que virá do avesso recordações e experiências de muitos melómanos. Heavy-metal interpretado por dois crooners, com Saunier poderoso e tenso nos pratos e no bombo. Acceptance Speech e Dipossessor, Plastic Thrills correspondem a um trio que não se afasta do rock, ressaltando a ligação dos Deerhoof com a power-pop, o glam-rock e o garage-rock. Directos e curtos, são puros exercícios de gosto e amizade.
O funk e a pop surgem, respectivamente, em Model Behavior e Kafe Mania! dando a ouvir o prazer lúdico que anima os Deerhoof, sem a tentação de virar as costas à discografia passada, enquanto Life is Sufering, com ritmos entrecortada por inflexões inesperadas, recorda o amor pelo groove. Sim, é para a dançar ao som de um riff que Keith Richards gostaria de roubar e com Saunier e Satomi a cantarem em coro, numa resignação aparente, “Life is suffering, man, higher and higher”. Little Hollywood não fecha The Magic, mas devia. As guitarras do hair-metal regressam, agora sobre batidas electrónicas, fazendo rodopiar as vozes sob a vigilância de um baixo punk-funk. Desencantada e juvenil, à beira de um silêncio que recusa sempre, condensa tudo o que os Deerhoof nos dão em The Magic: melodia e dissonância, violência e paz, beleza e fealdade. Viradas para o mundo.