“O que está a acontecer com os homossexuais é uma espécie de armadilha”

“Tenho 42 anos e ainda não encontrei um lugar onde me sinta totalmente eu”, diz o escritor e cineasta Abdellah Taïa, um dos primeiros intelectuais marroquinos a assumir a sua homossexualidade e a ter de se exilar por isso. Ocidente e mundo árabe, acusa, estão a usar os gays num jogo perigoso.

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Abdellah Taïa DR

"Quando se é gay aprende-se rapidamente a arte de esconder. Tornamo-nos especialistas. O que dizer, o que não dizer. A autenticidade passa um pouco por tentar responder à pergunta: como ser um bom mentiroso, como ser bom a esconder? Tenho muita dificuldade em lidar com estes sentimentos em sociedade. Na escrita, faço-o sem problemas. Esconder ou mentir são outra coisa. Na escrita se nos escondermos não seremos felizes. É uma felicidade diferente. É uma verdade diferente.”

A voz e a imagem de Abdellah Taïa são a de um rapaz pouco mais do que adolescente. Sentado numa cadeira no centro de um pequeno anfiteatro na Bowery, em Nova Iorque, fala do que é crescer e ser homossexual no mundo muçulmano, ter de fugir para se assumir, e escrever, filmar e pensar sobre isso em Paris, longe da recriminação sexual mas próximo do preconceito relativo à condição árabe. “No mundo em que vivemos ninguém é inocente, mas todos querem parecer e gritar que são”, diz agora via Skype, na ressaca do atentado de Orlando, do choque e da reflexão. Justamente no dia em que assina um artigo no Libération acusando os políticos árabes de não terem sido suficientemente veementes a condenar o ataque, e o Ocidente de ter tido um “discurso mais do que ambíguo” em relação ao mesmo. Deu-lhe o título de “Orlando, um silêncio não muito gay”.

Abdellah Taïa, 42 anos, escritor, autor de oito romances, realizador de cinema, tenta romper o que chama de coro de clichés e justificações simplistas para qualificar o que aconteceu a 12 de Junho, um domingo, na discoteca Pulse. “Os homossexuais estão muito sós. Eu sou marroquino, muçulmano, homossexual, vivo em Paris e senti-me muito só no domingo. Aterrorizado e só”, escreveu no Libération, uma frase que fez ecoar uma história que contara antes, em Nova Iorque, enquanto convidado da última edição do festival Pen America, no final de Abril. “Ser oficialmente homossexual em Marrocos é um pesadelo, mas o que se passa no submundo é tremendo. Agora estou em Paris e sou um objecto sexual para muita gente e, muitas vezes no coração do universo gay, vejo franceses a terem fantasias comigo que remetem para o século XIX, de uma subserviência árabe”, disse num debate sobre o "outro ficcional", ou seja, o modo como a escrita enforma uma identidade e a transforma em personagem literária. 

É a escrita sobre a estranheza e a fronteira entre o íntimo e o público ou político, feita a partir do reconhecimento de que se é diferente — olhado como tal — no meio onde se vive. Além de Abdellah, participaram nessa conversa os escritores Saleem Haddad, também gay, de múltiplas origens — palestiniana, libanesa, iraquiana e alemã — e o brasileiro Alexandre Vidal Porto, gay, diplomata e autor de Sergio Y, um romance que está a ser muito bem acolhido nos Estados Unidos e em que o protagonista é transexual. Entre os três, Adbellah era o único na condição de exilado. Foi, aliás, um dos primeiros intelectuais marroquinos a assumir publicamente a sua homossexualidade. “Todos tivemos de mudar e inventar um sentido de possibilidade, de classe social ou um passado. Em todos nós houve uma deslocação que pode ter correspondido a uma passagem de fronteira física de modo a conseguirmos sair de uma identidade ficcional de que éramos prisioneiros”, disse também então Adbellah, sobre a tal mentira que veio da necessidade de esconder o real tornando-o ficção.

Estamos em território ambíguo entre biografia e literatura de que nenhum dos três saiu, mas que em Adbellah surge particularmente marcado pela forma como a sua voz biográfica se mistura com a narrativa. Não sabe escrever a não ser na primeira pessoa. “Para mim a literatura é sobre a voz. Não consigo escrever na terceira pessoa, preciso de ouvir uma voz e não me pode ser estranha”, comentou em Nova Iorque, outra vez sobre o modo como a biografia se impõe, pelo menos enquanto ponto de partida. “Isso tem a ver com a minha definição de literatura, começar com alguma coisa que é muito concreta, real, e tentar a partir daí atingir o céu.”

Adbellah Taïa cresceu em Salé, a noroeste de Rabat, a capital, numa família pobre. “O francês era falado entre os ricos, em casa falava-se árabe, viam-se filmes egípcios, eu imitava-os e dava os papéis de protagonistas às minhas irmãs. Gostava daquele mundo de imagens e nunca sonhei ser escritor. Hoje escrevo em francês, mas o que sei sobre a vida é na minha primeira língua, o árabe. Gritar tem de ser em árabe. Acho que aprender francês foi uma decisão política para mim. Não se escapa da primeira experiência.” E nesse início havia a voz da tia a contar histórias. Foi nela que se inspirou para escrever Les Infidèles, finalista do Prémio Femina em 2012. “Era uma prostituta profissional. Começou a prostituir-se para ganhar dinheiro para levar comida aos irmãos e por isso eles nunca a expulsaram de casa. Viveu connosco até morrer e contava histórias à noite, quando as luzes se apagavam”, lembra. Histórias repetidas que fizeram da ideia mitológia da oralidade árabe um dado concreto da infância de Abdellah. Afirma que essa voz o formou, encontra o eco dela na sua, de escritor, e terá estado, por exemplo, na história de um rapaz de 13 anos, vítima de abuso sexual na terra onde vive.

Entre estigmas

Publicada em 2011 nas páginas do diário norte-americano The New York Times, a história nasceu da raiva. “Eu estava muito zangado. Vivi com as minhas irmãs experiências tão extremas. Perda, fome… Aos 13 anos a minha família pediu-me para que eu fosse o homem da casa e a vizinhança queria que eu fosse o objecto sexual, aquele que iam violar sempre que lhes apetecesse. Eu estava tão revoltado.” A voz sai num tom calmo, mas firme, um inglês com sotaque entre o árabe e o francês. A sala está em silêncio, só quebrado quando Abdellah tempera a tragédia com humor. “Eu não me sentia estranho. Sentia que não era justo. Eu dava tanto e eles queriam mais ou matavam-me. Eu queria ir embora. Lembro-me de nessa altura ter vontade de chorar; vivia num casa pequena com 11 pessoas e não havia sítio para onde ir e chorar em paz. Quando essas coisas aconteciam, eu saía de casa e deambulava. Para mim, Paris é a continuação desse deambular.”

Abdellah Taïa chegou a França com 25 anos. Queria ser realizador de cinema. “Acho que esse sonho era também a perseguição de uma vontade antiga de viver num lugar onde eu pudesse ser eu; onde pudesse ser livre e lutar por alguma coisa. Consegui isso mas, ao mesmo tempo, em França sou visto todos os dias como um árabe e tenho de lutar contra essa nova prisão em que esta sociedade me colocou: a dos árabes e do estigma que isso comporta. Por isso não posso dizer que o Ocidente é o lugar onde podemos ser totalmente livres. Há leis e direitos que protegem os indivíduos, mas há políticas e agendas e discursos que dizem o oposto”, refere já no pós-Orlando, em conversa via Skype, a mesma voz, o mesmo sotaque, igual determinação. “O que pode fazer alguém como eu? Antes de mais, porque não há muita gente que possa falar no mundo muçulmano, especialmente quando se é gay, tenho de ter muito cuidado com o que digo. Não quero aparecer como aquele que tem razão. A minha família continua totalmente controlada pelo poder de Marrocos que é composto por pessoas que não entendem o mundo. Tenho de analisar as coisas politicamente de um modo muito cuidadoso. Nessa conversa em Nova Iorque foi para mim muito fácil dizer que agora sou livre em Paris e que as outras pessoas não querem liberdade. Isso não é verdade. Não são eles que não querem liberdade. As pessoas que estão a dirigir o país não querem sequer que as pessoas possam pensar que podem conquistar a liberdade. Estão politicamente controladas.”

As palavras de Abdellah Taïa remetem para o artigo do Libération onde chama a atenção para a responsabilidade dos que têm voz, como ele. “A causa homossexual vai ser explorada, daqui para a frente, de uma maneira simplista nos debates pelos espíritos mais conservadores, os mais populistas, os meios assumidamente xenófobos. […] Limitamo-nos, nestes casos, a definições estreitas. Os direitos das minorias parecem muitos frágeis por estes dias […] face a grandes ameaças.” É mais uma vez o sublinhar de que não há inocentes. “Não posso dizer que o islão é o problema e o Ocidente a solução. O Ocidente não é de modo algum inocente. O racismo e a xenofobia são fenómenos muito complexos. Em França, na Holanda, na Suécia vemos reacções racistas em relação a pessoas que estão a passar necessidades e isso parece completamente normal. Ao mesmo tempo os dirigente dos países muçulmanos não alteram as coisas em relação à liberdade individual”, diz ao PÚBLICO o autor, repetindo perguntas, problematizando um assunto que não tem, para já, “respostas imediatas como muito querem fazer crer”. Perguntas como: Quem diz a verdade? Quem manipula quem? Quem vai impedir este mundo de explodir nesta luta pela verdade? Quem vai salvar os homossexuais nos países árabes e muçulmanos? Quem os vai ajudar a emanciparem-se, sinceramente e longe de todo o neocolonialismo? A questão, diz Abdellah, não é religiosa como Ocidente e Oriente querem fazer crer de acordo com conveniências muito próprias.

“Não posso generalizar, não seria nem moralmente correcto fazer isso. É verdade que a religião continua a ser muito importante no mundo árabe e muçulmano porque é usada politicamente pelos dirigentes desses países. Se o islão é contra a homossexualidade, o cristianismo e o judaísmo também são. Mas é muito mais do que isso. Hoje na América há padres evangelistas e políticos republicanos a dizer coisas odiosas contra os homossexuais. Não estou a defender o islão. Estou a tentar pensar com alguma clareza. Não é por causa do islão enquanto religião. O islão é como outra religião. É por causa de quem usa a religião para permanecer no poder e dominar o outro. Não devemos esquecer do que não está assim tão distante - no início do século XX a homossexualidade era considerada uma doença no Ocidente. E também não estou aqui a proteger o mundo islâmico. O mundo islâmico tem de ter fazer autocrítica e de mudar. O que está a acontecer agora aos homossexuais é uma espécie de armadilha.” É por isso que escreve: “No domingo [dia 12 de Junho], o desespero atingiu um novo patamar. Num site marroquino li os comentários a artigos sobre a matança de Orlando. Oitenta por cento estavam repletos de ódio, de violência e de justificações pseudo-religiosas. Num site francês, os comentários estavam cheios de cólera quando falavam dos árabes e dos muçulmanos, recheados de erros, de uma ignorância abissal e de racismo assumido. Claro que há neste mundo os que acreditam que a esperança se deve manter viva — eu faço parte desses idiotas.” 

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