Os bons velhos Radiohead e a boa nova Courtney Barnett
Na segunda e há muito esgotada noite do Nos Alive, os Radiohead deram prova de vitalidade. Sexta à noite houve ainda hipnose colectiva com os Tame Impala e cultos em ebulição com Courtney Barnett e Father John Misty.
Ouve-se Ful stop e My iron lung tocados de seguida e aquilo que separa os dois temas é bem mais do que 22 anos. Aprende-se na matemática que na relação entre dois conjuntos pode conter-se ou estar-se contido. No caso dos Radiohead, pode dizer-se que desde que, em 2003, iniciaram com Hail to the Thief o caminho que os trouxe até aqui, até esta noite de sexta-feira em que se apresentaram no Passeio Marítimo de Algés diante de um Nos Alive esgotado há meses, são olhados em permanência nesta perspectiva de que o passado contém cada novo disco e cada concerto, e de que forma estão contidos pelo passado. Ou seja, como acontece com qualquer banda que obtenha uma razoável popularidade, a partir do ponto máximo desse reconhecimento artístico tudo aquilo que vier a seguir será colocado sempre à sombra desse passado, medindo até que ponto lhe faz justiça ou se deixa verdadeiramente assombrar.
Quando falamos dos Radiohead, esta medição torna-se ainda mais ingrata pelo simples facto de que, até Hail to to the Thief, não restavam dúvidas de que o seu percurso se fazia escavando na direcção do futuro, galgando barreiras e desafios como se a música fosse um mistério sempre à espera de ser desvendado. Hoje, a música dos Radiohead já não é feita desse mistério, deixou de comportar uma verdadeira ideia de risco. Ainda assim, ouvir e ver o grupo em palco em 2016 é bastante mais grato do que tinha sido há quatro anos. Por duas razões: porque A Moon Shaped Pool é um álbum que não fica tão maltratado quando colocado lado a lado com os primeiros álbuns e porque, desta vez, a trupe de Thom Yorke forçou menos o disco novo.
Se há quatro anos, por alturas da apresentação de The King of Limbs também no Alive, parecera uma eternidade até os Radiohead despertarem de um sonho letárgico em que se satisfaziam com reportório intrincado e menos adequado ao gosto popular dos festivais, neste regresso a introdução a Moon Shaped Pool fez-se com uma convincente sequência inaugural (Burn the witch, Daydreaming, Decks dark, Desert island disk e Ful stop) que desembocou em My iron lung e Talk show host, dois clássicos do grupo. Ful stop e My iron lung, portanto, para se perceber como os Radiohead passaram de uma banda de guitarras para uma banda com guitarras, e de como o tempo levou a que o génio de Jonny Greenwood enquanto deflagrador de constantes ataques à harmonia das canções (desde Creep que assim é) traz hoje um fôlego criativo suplementar com os arranjos de cordas que ouvimos engrandecer canções como Burn the witch ou Daydreaming em disco mas que estão ausentes dos concertos.
No seu lugar, no entanto, encontramos um final de Talk show host a ameaçar transformar a balada espacial num inesperado funk bastardo, e The gloaming a deixar-se caminhar para um desfecho em que toda a canção parece ser sugada por umas teclas em contra-mão, a gorgolejar dissonância. Tanto em The gloaming, em ritmo assaltado por espasmos à boa maneira do afrobeat, como em Lotus flower, percebe-se bem o porquê de os Radiohead terem em permanência duas baterias em palco, compensando em poderio percussivo a limitação na transposição de alguns arranjos que exigiriam toda uma orquestra. Rodeadas de Exit music (for a film), Everything in its right place, Idioteque e Street spirit (fade out), percebe-se que do passado recente só Lotus flower e Reckoner logram gerar uma reacção eufórica na multidão de 55 mil pessoas.
E falamos de 55 mil porque, estando esgotado o segundo dia do Nos Alive, a banda terá pedido que não houvesse outros concertos a decorrer em simultâneo. A organização acedeu, todos os caminhos foram dar aos Radiohead e estes retribuíram com duas horas de concerto, culminadas com um par de encores de que fizeram parte Paranoid android ou There there, primeiro, Creep e Karma police depois. Numa demonstração evidente de que sendo o presente dos Radiohead mais estimulante do que era há meia dúzia de anos, o seu desempenho depende agora, sobretudo, de escavar em direcção ao passado. Um bom concerto, mas sem a anterior sensação de se estar a ouvir música fervente, a exigir que o público os seguisse. Agora não é preciso, já sabemos onde eles estão.
Psicadelismo australiano
A questão do que fazer com o passado (o próprio e o alheio) está também presente em gente com muito menos histórico. Ao início da tarde, o segundo palco do festival acolhia os Jagwar Ma, autores em 2013 de um Howlin’ que era todo um portento de psicadelismo de ancas fogosas, uma versão de Madchester aumentada, brilhante quando temas como Come save me faziam um batido sincrético de Small Faces, Beatles e electrónica dançável. Sem perder esta essência, Come save me parece agora filha tardia do disco sound, enquanto o trio australiano parece estar a frequentar a igreja dos Animal Collective actuais, em que os músicos assumem o papel de DJ, dedicados a disparar batidas de eficácia comprovada e a rodar botões. Depois de uma excelente passagem pelo Primavera Sound em 2014, os Jagwar Ma parecem agora andar algo perdidos na sua própria trip, por vezes embarcando nestas viagens só porque sim, sem que daí resulte qualquer tipo de revelação (própria ou alheia).
Espreite-se, portanto, os seus conterrâneos Tame Impala no palco principal, para ver como se faz este exercício de despejar electrónica para cima de uma cartilha psicadélica. No centro do palco está a imagem projectada de uma espiral, correspondente óbvia de todo o exercício de hipnose colectiva que o grupo liderado por Kevin Parker tenta levar a cabo. E tê-lo-á conseguido, a julgar pela “competição” que se instalou entre o público feminino sempre que a sua presença era escolhida pelo realizador de serviço para figurar nos ecrãs gigantes que ladeavam o palco, naquilo que foi tomado como um desafio à nudez e que levou Parker a soltar um “Ai, se os vossos pais vos vissem”, para logo em seguida corrigir para um “estamos num festival, façam o que quiserem”.
Da parte dos Tame Impala, a mesma receita quase impossível de mergulhar a voz entre os instrumentos, de tornar maravilhosamente difusa qualquer canção em que põem as mãos (magníficas Let it happen, Elephant, The less I know the better ou Feels like we only go backwards), conseguindo cruzar um andamento motorik com uma canção à medida dos T.Rex em Elephant ou soar estranhamente próximos dos Air de Sexy boy em The less I know the better, agora que vivem no reino dos sintetizadores. Mais uma excelente passagem dos Tame Impala por palcos portugueses, após a edição de um Currents que ficou longe do consenso.
Um quarto com tamanho de mundo
Numa sexta-feira especialmente australiana, destaque inevitável ainda para a presença de Courtney Barnett – que, em conjunto com Father John Misty, andou pelo Palco Heineken a preparar e a alimentar o culto. Com um ar desalinhado, de quem saiu da cama directamente para o concerto, deixaria claro o triângulo em que parece mover-se: o mesmo fulgor melódico de Julianna Hatfield nos anos 90, a queda narrativa de Bob Dylan de hoje e sempre, uma certa displicência ainda com travo adolescente e fechada no seu próprio mundo que lembra os Moldy Peaches.
Com uma pequena multidão em delírio e letras na ponta da língua, Barnett passou por temas como An illustration of loneliness, Debbie downer, Depreston ou Pedestrian at best, disparou os seus existencialismos com o tamanho de um quarto e o alcance do mundo, andou a tocar guitarra de joelhos, entrou e saiu como se só por acidente alguém pudesse ter dado por ela. Exactamente o contrário de Father John Misty, homem que toma o palco como se estivesse a celebrar uma missa campal. Entre baladas que tentam ser gospel e canções de um classicismo sulista à prova de bala (muita country à espreita), permite-se dar ares de possuído aqui e ali mas rapidamente volta à sua condição primordial de cantor com o coração a saltar pela boca, recordando o bom legado dos Lift to Experience. Previsão de adoração popular para os próximos anos.
A jornada contou ainda com o funk agitado de Da Chick – que começou por homenagear Prince numa passagem por 1999 – ou o encontro Norte-Sul do hip hop nacional protagonizado por Sam the Kid e Mundo Segundo. Mas nada como começar a tarde no cenário escondido numa rua por detrás da restauração. Um palco que é sobretudo a recriação de uma casa de fados, onde Helder Moutinho cantou e dirigiu uma série de pequenos concertos com Ricardo Parreira (guitarra portuguesa), Marco Oliveira (viola de fado) e Vanessa Alves (cantora). Já na véspera o espaço enchera para ouvir Raquel Tavares e voltou a provar-se que o crescente interesse internacional pelo Nos Alive encontra nesta pequena montra um discreto mas justo chamariz para o fado, capaz de encantar o público com um Fado bailado ou O que sobrou da Mouraria. Afinal, até o fado é rock’n’roll.