O festival de Verão que faz a história do cinema desconhecido

Os filmes-concerto podem ser o evento mais mediático da edição 2016, mas a partir de sábado o Curtas Vila do Conde rejuvenesce este ano a sua lista de autores e assume abertamente a sua dimensão cinéfila

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Uma “carta branca” e a presença na galeria Solar: João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata são os autores de uma “ocupação global” nesta edição do Curtas

Miguel Dias lembra-se, por entre risos, da boutade que um dos seus co-directores citou há uns anos a propósito do Curtas Vila do Conde: “o primeiro festival de Verão”, uma ocasião que concorria mais com a música e os eventos de Verão do que propriamente com os outros festivais de cinema. “Quando disseram isso, queriam dizer que o festivaltenta ir além do cinema, explorar-lhe os limites sem fugir dele,” diz um dos directores de sempre do certame, ao telefone de Vila do Conde, enquanto ultima os preparativos para a edição 2016, que arranca este sábado e se prolonga até dia 17 no Teatro Municipal daquela comunidade nortenha. “Achámos sempre interessante explorar esses limites nas exposições, em algumas propostas da competição experimental, ou desde que as artes plásticas começaram a usar a imagem e o video como ferramentas principais”.

Em 2016, contudo, a ideia do Curtas ser um “festival de Verão” parece ter mais razão de ser do que nunca. Depois do “impacto” de toda uma nova geração de cineastas que ficou conhecida por “geração Curtas”, da celebração dos 20 anos em 2012 com um ambicioso programa de produção de filmes, da estreia nacional da trilogia das Mil e Uma Noites de Miguel Gomes em 2015, no ano 24 do Curtas é a música que se chega à frente, através do programa de filmes-concerto Stereo são nada menos de oito filmes-concerto, encabeçadas pelo fenómeno Tindersticks, com dois concertos já esgotados (quarta 13 às 20h00 e 22h30).

Se o lado musical é o mais “mediático” da edição 2016 do Curtas, está longe de esgotar o certame e a sua atenção às novas formas de filmar, contar e pensar o cinema. Miguel Dias explica como o Curtas foi sempre “uma tentativa de constituir a história do cinema desconhecido”, referindo-se à dimensão “secundária” e à tendência de laboratório de experiências que o formato da curta sempre teve. “Começámos por querer legitimar um género, a curta-metragem, através da exibição dos exemplos clássicos, a demonstração que mesmo os grandes cineastas começaram por trabalhar na curta. Hoje, essa legitimação já não é necessária, mas continuamos a achar interessante o diálogo entre o passado e o presente. É por isso que, no texto de apresentação deste ano, falamos de estar 'na vanguarda da cinefilia'. Somos um festival cinéfilo, e demos um passo importante através de uma nova secção atenta aos ensaios audiovisuais.”

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Esta nova secção, sob o genérico Toda a Memória das Imagens – O Ensaio Audiovisual, aposta num formato que tem vindo a ganhar força nos blogues e sites de crítica online e nos meios académicos, pequenos filmes de montagem que utilizam imagens e excertos de filmes para efeitos de análise académica ou mesmo crítica. O Curtas esteve sempre atento ao fenómeno – um dos pioneiros da forma, Mark Rappaport, é presença regular mas, este ano, o festival dá-lhe outra força, enquadrando-o num workshop sobre a crítica cinematográfica, e completando-o com o trabalho continuado de recuperação de imagens perdidas da história de Vila do Conde e com o programa de “carta branca” aos realizadores João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata.

Dias fala do desejo de “constituir uma espécie de arquivo das imagens em movimento de Vila do Conde”, onde já se integravam projectos anteriores encomendados pelo festival em toadas mais experimentais ou ficcionadas, como A Glória de Fazer Cinema em Portugal de Manuel Mozos e Vila do Conde Espraiada de Miguel Clara Vasconcelos. Este ano, recupera-se o filme de Ricardo Costa, E do Mar Nasceu… (domingo 10 às 17h), rodado em 1977 na comunidade piscatória das Caxinas; uma “cápsula do tempo” de uma experiência de cooperativismo que reflecte, nas palavras de Dias, as “utopias políticas” do tempo em que foi feito.

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Quanto à “carta branca”, “é uma coisa que gostávamos de fazer muito mais vezes, porque nos agrada descobrir e partilhar as cumplicidades cinéfilas dos realizadores”. A escolha de Rodrigues e do seu parceiro criativo Guerra da Mata, declinada em três sessões (quarta 13 e sábado 16 às 23h30, e sexta 15 às 21h45), prolonga o diálogo entre passado e presente de que Miguel Dias fala, através de uma selecção onde coabitam Andy Warhol e Jean-Luc Godard, Jean Genet e Jacques Demy, Buster Keaton e Kenneth Anger. A carta branca surge na sequência do convite feito para “ocupar” a galeria Solar gerida pela organização do festival (com a exposição Do Rio das Pérolas ao Ave, patente até 25 de Setembro). “A primeira vez que falámos disto com o João Pedro foi há cerca de dois anos, ou mais,” explica Dias. “Sempre sentimos que havia no cinema dele algo que se podia transformar numa instalação, algo que passa inclusive por um certo fetichismo relativamente a objectos ou cenários, e ele já tinha experimentado o formato com a Manhã de Santo António. Estávamos muito curiosos por saber como é que eles poderiam ocupar o espaço da Solar, mas por questões práticas e logísticas – só agora é que foi possível.”

Se essa presença por todo o festival de João Pedro Rodrigues tem um contorno de “ocupação global”, Miguel Dias diz entre risos que reflecte precisamente a multidisciplinaridade que o festival sempre procurou. “A verdade é que não há mais para onde o festival se possa expandir em termos de espaço – temos apenas duas salas no Teatro Municipal. Daí que tenhamos sempre procurado expandir-nos através da diversidade de propostas e da captação de públicos diferentes.” Até agora, não se têm dado mal. A ver vamos em 2016.

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