Athina Rachel Tsangari filma o Facebook no alto mar

Chevalier, a história de seis homens num barco a disputarem quem é “o melhor em geral”, é um olhar sobre o tribalismo masculino rodado por uma mulher, que diz filmar “tragédias screwball” como se fossem ficção-científica do presente. Ela explica, ao telefone de Atenas.

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Seis homens numa viagem de barco pelas áreas costeiras gregas, decidem entreter-se com um jogo sobre qual dos seis é “o melhor em geral”

Começámos por ouvir falar de Athina Rachel Tsangari com os silly walks à Monty Python e com as aulas de beijo de Ariane Labed e Evangelia Randou em Attenberg, filme que deu que falar no concurso de Veneza 2010. A cineasta e artista multimedia foi logo encaixada na “nova vaga” de cinema grego surreal e non-sense despoletada por Yorgos Lanthimos com Canino (2007). Ainda por cima, Tsangari pôs-se a jeito: produziu os três primeiros filmes de Lanthimos, que era também um dos quatro actores de Attenberg. E o seu novo filme Chevalier, esta semana nas salas, foi co-escrito com o argumentista regular de Lanthimos, Efthimis Filippou.

Mas Athina Rachel Tsangari (n. 1966) já filmava antes deles – a sua primeira longa The Slow Business of Going data de 2000 e foi rodada nos EUA, onde viveu vários anos, lançou o festival Cinematexas e se integrou na “cena de Austin” à volta de Richard Linklater, de quem é grande amiga (era, aliás, uma das “anfitriãs” de Ethan Hawke e Julie Delpy na Grécia em Antes da Meia-Noite). Seis anos depois de Attenberg, Chevalier é apenas a terceira longa de Tsangari, sucedendo a uma curta de 35 minutos e a uma instalação multimedia encomendada pela fundação de arte contemporânea grega Deste, The Capsule (2012), que se prolonga de algum modo no ponto de partida do novo filme. Onde ali havia sete mulheres fechadas num internato na ilha de Hydra, aqui há seis homens numa viagem de barco pelas áreas costeiras gregas, que decidem entreter-se com um jogo sobre qual dos seis é “o melhor em geral”, submetendo cada um deles ao escrutínio dos outros em áreas tão distintas como as erecções, o ressonar na cama ou o nível de colesterol. O concurso descamba rapidamente para uma luta pela vitória tão divertida como desconcertante, que, entre risos, uma Tsangari visivelmente conversadora e bem-disposta, define ao telefone de Atenas como “filmar o Facebook na vida real”.

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O concurso descamba rapidamente para uma luta pela vitória tão divertida como desconcertante

Chevalier tem qualquer coisa de “efeito ao retardador”. Como um medicamento que só faz efeito a prazo, é um filme que fica a remoer e se vai revelando aos poucos.
[gargalhadas] Fico muito contente que diga isso! Era o efeito que eu pretendia. Faço filmes muito… infrequentemente [risos], mas desde a minha primeira longa-metragem que os pontos em comum só se revelam com o tempo. O Richard Linklater diz que o Chevalier é uma espécie de “sequela espiritual” do meu filme anterior, The Capsule, que era também sobre o poder, sobre passar uma série de provas a fim de sermos aceites. Creio que toda essa estrutura do concurso ou do jogo é algo que me obceca. Gosto de inventar de cada vez uma nova estrutura, uma série de provas que as personagens precisem de ultrapassar a fim de chegar a qualquer lado. Um sistema que tenha as suas próprias regras e codificações sempre alguns passos ao lado da realidade. Não são exactamente filmes fantásticos nem de ficção-científica, mas depois de começar a trabalhar abordo essas ideias quase como se fossem uma ficção-científica do presente. É um pouco como as regras do filme de género; não fazem sentido no mundo real, mas a sua rigidez faz todo o sentido dentro do género.

Esse conceito das provas que têm de ser superadas é algo de tribal, só que são tribos que as personagens criam ou das quais escolhem fazer parte.
É uma observação muito acertada. Do mesmo modo que em Attenberg Marina e a sua amiga compunham uma tribo diferente da de Marina e do seu pai, e que a própria cidade em que eles viviam era por si só uma tribo. Gosto mais de pensar nessas pessoas como tribos, mesmo que sejam apenas tribos de dois, do que de chamar-lhes extra-terrestres, friques ou malucos. Depois de The Capsule fiquei muito interessada no modo como esta experiência de filmar uma tribo de um único sexo poderia resultar com um grupo de homens, para investigar outra cor, outra tonalidade do tribalismo. Sabia que queria uma espécie de jogo, e decidimos muito depressa que esse concurso e a avaliação iam recair sobre coisas muito pequenas. Se virmos as coisas mais pequeninas e mais mundanas com o microscópio, subitamente tornam-se numa espécie de realidade aumentada, ganham uma dimensão transcendental ou metafísica.

Às tantas parece que Chevalier está a filmar o Facebook na vida real...
Sim! Absolutamente! Nunca penso nessas coisas quando faço um filme, não decidi que ia fazer uma versão física do Facebook, mas é exactamente o que acontece naquele barco. Um concurso de likes, literalmente. Já ninguém pensa no Facebook, é o nosso primeiro veículo social, mas se pegarmos exactamente nas mesmas regras – OK, o que é que fizeste hoje? Usaste esta camisa? 17 likes. Ouviste esta canção? Menos 6. Se pegarmos nesta lógica que faz sentido no Facebook e a transferirmos para um jogo como o de Chevalier, compreendemos o seu absurdo e também a sua futilidade.

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E a palavra “chevalier” vem da ideia de cavalaria, de cavalheirismo, embora na verdade ninguém naquele barco queira saber disso.
Exactamente! (risos) E no final há um vencedor, que recebe o anel de cavaleiro. Mas queríamos que isso fosse muito subtil. Há quem perceba quem é o vencedor e há quem não dê por isso… O que interessa é o processo de jogar o jogo e de nos avaliarmos a nós próprios e uns aos outros, não quem é o vencedor. O importante era que as personagens dessem por si envolvidas no jogo de modo a não serem capazes de lhe escapar.

Isso leva muito à ideia das “noites de homens”, que saem juntos ou vão de fim-de-semana juntos. Mas o filme não escamoteia a fragilidade deles, antes pelo contrário.
Isso veio muito dos actores. Escolhi com muito cuidado o elenco, era importante que houvesse química entre eles mas também que cada um tivesse personalidades fortes. Ensaiámos durante dois meses, no barco, e compreendi que eles próprios tinham chegado com lugares-comuns do que achavam sobre o jogo de quem é o melhor em geral, que é completamente absurdo e ridículo como objectivo. Mas ao fim da primeira semana de ensaios começaram, verdadeiramente, a ser muito sinceros e abertos. Muitos dos seus traços pessoais, medos, inseguranças, humor, vulnerabilidades, tornaram-se parte das personagens. Talvez o facto de eu estar extremamente interessada nisso os tenha feito sentir suficientemente seguros o suficiente para se abrirem.

O filme evita escolher um protagonista.
Isso já estava pensado desde a escrita. Fazíamos muita questão que não houvesse nenhum protagonista evidente, que cada espectador pudesse escolher o seu próprio protagonista. Era também um jogo de likes, porque os espectadores estariam sempre em desacordo sobre quem é o melhor em geral. Dito isto, levou muito tempo a montar o filme, nove meses. Gosto de fazer uma primeira montagem e depois afastar-me um mês para depois reavaliar tudo, sobretudo as interpretações, porque um filme é sempre uma composição, quase uma coreografia de vozes e sentimentos. Mas como este foi o meu primeiro filme com um elenco grande e muito diálogo, passámos muito tempo a obter uma “temperatura” igual para todos. Como se os actores fossem um grupo de instrumentos que se complementam. Filmei em écrã panorâmico porque queria ter o máximo de rostos no écrã e o máximo de reacções, a câmara estava sempre montada sobre rodas para poder mover-se e todos os actores estavam sempre no enquadramento. Tinham de estar permanentemente em on, e isto no mar, com muita ondulação de vez em quando… Mesmo fisicamente, foi bastante exigente para eles.

E para si?
Vomitei antes de subir a bordo para os primeiros ensaios. Literalmente. Por causa do stress e da ansiedade. Mas depois de começar a trabalhar com eles soube que ia tudo correr bem (risos). Mas sim, também foi difícil. Eles ficaram muito amigos uns dos outros e às tantas parecia um jardim de infância, e era muito difícil discipliná-los. (risos) Fui muito estrita. (risos)

Essa cumplicidade e esse humor transparecem no filme. Há qualquer coisa de comédia disparatada, screwball, só que em câmara-lenta…
Sim! Gosto de dizer que os meus filmes são tragédias screwball.

Sei que não gosta muito da ideia de fazer parte de uma nova geração de cineastas gregos. Mas tendo em conta que temos estado a falar de tribos, e de famílias, existe de facto um estilo em comum entre cineastas como você, Yorgos Lanthimos ou Babis Makridis… É inevitável perguntar se isso é por serem gregos ou por pertencerem a uma mesma geração.
Penso que isso é algo que vos cabe mais a vocês decidir, e talvez mesmo para vocês ainda seja cedo. Nós estamos no meio, não temos o distanciamento suficiente para falar com um mínimo de perspectiva. O que posso dizer é que o Yorgos, o Babis, eu própria e claro o Efthimis Filippou, o nosso argumentista, somos amigos há dez anos. Sentimo-nos parte de uma nação muito absurda que é em si própria uma tragédia screwball, e temos ideias, conversas e influências semelhantes. Respiramos o mesmo ar e crescemos com as mesmas alergias, e escolhemos um ponto de vista mais distanciado ou cínico ou alusivo ou elíptico. E os nossos filmes têm de facto afinidades. Mas não sinto que exista uma única vaga grega, há muitas vagas e são todos anárquicas e heterogéneas. Há outras 25 ou 30 pessoas da nossa geração, e outras cem de gerações mais novas.... Pequenas tribos, por vezes apenas só de um (risos).

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