O abismo europeu em Viseu, segundo ±MaisMenos± e VHILS
Pensar Portugal, a Europa, este nosso tempo, eis o desafio da sexta edição dos Jardins Efémeros de Viseu, que termina no próximo domingo.
Há carros velhos cobertos de pó, ferros suspensos, ferramentas espalhadas, buracos, vegetação errante e um velho letreiro a informar que ninguém se responsabilizará por eventuais danos nas viaturas. Estamos na antiga Fundição Francisco Gonçalves, em Viseu, espaço industrial abandonado, e ironicamente transformado em Pavilhão do Mundo Português – alusão à Exposição do Mundo Português que decorreu há 76 anos na Lisboa do Estado Novo –, no contexto da sexta edição do evento multidisciplinar Jardins Efémeros, que teve início na última sexta-feira e se prolonga até 10 de Julho.
É uma antiga fundição mas é também, simbolicamente, um país, Portugal, e um continente, a Europa, deteriorados, esvaziados e sem horizonte de futuro. A ascensão dos ideais de extrema-direita, a economia como única grelha de leitura da realidade, a crise dos refugiados ou a cisão do Reino Unido serviram a dois conhecidos artistas portugueses, ±MaisMenos± (Miguel Januário) e VHILS (Alexandre Farto), para trabalharem na intervenção Portugal, Retrocesso ao Futuro, reflectindo sobre a relação de Portugal com a Europa e o seu posicionamento no mundo. Conhecem-se há muito, mas foi a primeira vez que criaram juntos.
“Tínhamos ideias prévias antes de visitarmos o espaço – como essa de nos focarmos em Portugal – mas quando o fizemos o 'Brexit' estava na ordem do dia e acabámos por direcionar as intervenções no sentido da interrogação sobre a Europa”, explica Miguel Januário.
Numa das paredes vemos a palavra "Europia" (num jogo com as palavras utopia, entropia ou distopia), segundo a técnica habitual de VHILS, enquanto noutra sala uma bandeira da União Europeia (UE) cobre um monte de detritos, rodeada de arame farpado, e um buraco profundo se abre no chão em forma de mapa da Europa.
“Falámos muito entre nós sobre a Europa, dos conflitos bélicos à construção europeia, passando pela instabilidade de hoje. Algo que parecia perene para a nossa geração tem vindo a revelar-se volátil. Daí as bandeiras na inscrição de Europia, que nos relacionam com essa continuidade histórica, ao mesmo tempo que foram escavadas as camadas invisíveis, trazendo-as para a superfície, provocando na peça um ar de ruína, de algo inacabado”, justifica Januário.
O próprio local contribuiu para o ambiente decadente, com marcas de passagem do tempo, de desgaste, de esquecimento. “Foi a partir daí que pensámos na peça do mapa da Europa, com a sua silhueta a dar a ideia de buraco, de abismo, de possibilidade de queda.” Ali perto, a tal bandeira da UE a cobrir entulho concretiza "a velha metáfora de varrer o lixo para debaixo do tapete”. “É cada vez mais nítido que existe uma Europa que não consegue resolver os seus conflitos e tenta esconder os problemas. Aquele tapete já não consegue esconder todos os detritos, ao mesmo tempo que o arame farpado cria distância no espectador, como os visitantes que na actualidade chegam à Europa e já não conseguem vislumbrar aqueles que outrora foram os seus ideais.”
Mas o espaço da antiga fundição não acolhe apenas peças de ±MaisMenos± e VHILS. Há também fotografias de Duarte Belo, que tem feito um levantamento imagético da paisagem, das formas de povoamento e da arquitectura em Portugal, e que em Viseu apresenta três conjuntos de fotos, numa reflexão sobre o espaço português. E também uma instalação fílmica de Carl Hagew, Rafael Farias e Tiago Resende, propondo uma viagem entre o passado, o presente e o futuro do lugar.
A velha fundição não foi aliás o único espaço recriado para acolher exposições. Uma imponente casa que já foi escola e recebeu serviços de veterinária foi também transformada para receber intervenções, uma zona de lazer e um restaurante comunitário. Doze artistas emergentes, portugueses e estrangeiros, transformaram-na, com cada recanto a revelar algo de surpreendente, como as fotografias de Cindy Steiler, a exposição têxtil de Ricardo de Almeida Correia à volta do amor, os desenhos de paisagens rurais de Anne Watt, os registos sonoros e visuais de José Crúzio e Marco Alexandre ou as memórias em forma de objectos e retratos de Liliana Bernardo.
Por sua vez, num espaço expositivo clássico, o Museu Nacional Grão Vasco, Diogo Pimentão propõe Insignificantes, um conjunto de trabalhos com um método de revelação que remete para o início da fotografia. E nas muitas intervenções artísticas espalhadas pelo centro histórico existe quase sempre um tema aglutinador: o tempo. Foi a partir desse mote que sessões de cinema, exposições, peças de teatro, mercados, oficinas até alguns concertos foram imaginados, tentando mostrar o que de mais exploratório se vai fazendo no mundo das artes e, simultaneamente, criar uma relação de descoberta afectiva da cidade.
Uma descoberta que não receia a diversidade. O campo da música é um bom exemplo. No sábado tanto foi possível ouvir velho rock'n'roll pelos portugueses A.J. & The Rockin’Trio, como o psicadelismo pop dos Sensible Soccers, que actuaram no adro da Sé, a harpa encantatória da americana Mary Lattimore, que se mostrou maravilhada na mais do que lotada Catedral de Viseu, ou a electrónica sombria e experimental da cantora e performer suíça Aisha Devi. E, para acabar a noite, uma sessão DJ pela radialista Inês Meneses, com paragem obrigatória nos Arcade Fire ou nos GNR. Tudo gratuito, porque em Viseu existe quem acredita que as artes e a cultura não são apenas entretenimento, mas formas de intervir numa comunidade, num espaço e num tempo.
Até dia 10 ainda haverá muito para ver, ouvir e experienciar, como os concertos de Biosphere, Saudaá Group, Autarkic, Filho da Mãe, Joana Gama, Peixe: Avião ou dos dinamarqueses Liima, de que fazem parte membros dos Efterklang. A banda lançou há meses um álbum na histórica editora 4AD e está em residência artística em Viseu, antecipando o concerto da próxima sexta-feira.
“Vai sendo raro encontrar um acontecimento destes por essa Europa, onde nos sentimos em simultâneo bem recebidos e surpreendidos pela programação.” Palavra de Casper Clausen dos Liima.