Retrato de mulher grávida em caos feliz
Duas realizadoras, uma brasileira, outra dinamarquesa, acompanham uma actriz italiana e e o seu companheiro francês durante os nove meses de uma gravidez à beira de um ataque de nervos. O resultado, Olmo e a Gaivota, é documentário ficcionado. Ou ficção documental. Ou nem uma coisa nem outra.
“Um dia na vida de uma mulher, no qual não acontece nada, mas tudo acontece dentro da sua mente e do seu corpo.” O que quer que seja que se leia nesta frase da realizadora brasileira Petra Costa (n. 1983) não corresponderá por inteiro aquilo que está no écrã em Olmo e a Gaivota. O projecto pode ter começado por aí, como explica Costa sentada ao lado da sua co-realizadora dinamarquesa Lea Glob (n. 1982), mas rapidamente Olmo e a Gaivota deixou de ser um dia na vida de uma mulher. Porque “essa mulher engravida e o que começa por ser um dia torna-se em nove meses, e ela depois tem uma hemorragia e tem de ficar em casa e o filme quase é cancelado… Mas a Lea disse 'não. Se ela não pode sair, vamos nós entrar no apartamento.'”
Olmo e a Gaivota, então, começou por ser um dia e acaba por ser nove meses na vida de uma actriz e do seu companheiro, actores no Théâtre du Soleil de Ariane Mnouchkine. A gaivota do título é a Gaivota de Tchekov, que a italiana Olivia Corsini (n. 1979) e o francês Serge Nicolaï (n. 1967) ensaiam numa versão livre no princípio do filme, antes da feliz notícia lhes virar a vida de pernas para o ar. Olmo é o nome do menino, hoje com dois anos e que tem acompanhado os pais em muitas das viagens da equipa desde que o filme estreou no concurso Cineastas do Futuro na edição 2015 do festival de Locarno. Portugal, onde Olmo e a Gaivota esteve a concurso no IndieLisboa (antecedendo a sua chegada às salas, esta semana) não foi excepção: Olmo diverte-se com uma câmara fotográfica pelos corredores da Culturgest enquanto os pais e as realizadoras dão entrevistas, tira fotos ao pai, à mãe, ao pessoal da organização, numa espécie de “caos feliz” que parece conquistar quem o rodeia mas que é algo que se reconhece como presente no próprio filme.
“A Petra e a Lea conseguiram transpor bastante bem quem nós somos,” explica Olivia Corsini enquanto Olmo se diverte. “A ideia do caos feliz é algo em que nos revejo, mesmo agora com o miúdo… A Petra – e falo dela porque foi quem conhecemos primeiro – foi tocada pela maneira de ser e viver que nos é própria. Se eu e o Serge estamos juntos há doze anos, é porque conseguimos criar o nosso «animal» de quatro patas, e que é agora de seis, que é um animal grande mas bastante leve.” Ri-se. “Somos bordélicos, somos complicados, somos excessivos, mas somos divertidos!”
A dúvida metódica
É uma deixa tão boa como qualquer outra para conversarmos sobre um filme que começou por ser um convite formulado pelo festival dinamarquês de cinema documental CPH:DOX. Olmo e a Gaivota é um documentário sobre a gravidez de Olivia, é uma versão ficcional desses nove meses, ou é outra coisa qualquer? Afinal, vemos a actriz na casa de banho a fazer testes de gravidez, ou numa consulta médica, ou a fazer ecografias. Mas também a vemos a cantar, com uma peruca e maquilhagem, para um Serge que ensaia um papel à mesa do jantar e parece não lhe ligar nenhuma. Às tantas, no meio de uma discussão entre ambos, o filme literalmente pára, e ouvimos uma das realizadoras a pedir que Olivia e Serge recomecem a discussão num outro tom… Em que ficamos?
“É muito aborrecido,” admite Serge Nicolaï meio a sorrir, “quando as pessoas fazem essa pergunta sobre a parte de realidade e a parte de ficção. Porque não queremos responder. Queremos proteger um pouco a parte de dúvida, que é também importante para o próprio espectador. Não temos vontade de oferecer uma solução sobre o que é ficcional ou não.”
Petra Costa diz que “o filme existe precisamente nessa corda bamba entre ficção e realidade”. Lea Glob prefere chamar-lhe “não-ficção,” explicando que “é essa busca que motiva o filme e o público. A razão pela qual integrámos algumas dessas… «intervenções» era tornar muito específico que não há verdadeiramente maneira de perceber onde começa a ficção e termina a realidade.”
Voltamos, então, ao princípio: em 2012, no programa de produção do CPH:DOX, intitulado CPH LAB, que todos os anos junta, durante uma semana, realizadores que não se conhecem para desenvolverem um projecto em comum que o festival ajudará em seguida a montar. Petra Costa era a “veterana” (já com uma longa prévia, Elena), Lea Glob a “noviça” (com uma única curta). Encontraram terreno comum num romance de que ambas gostavam muito, Mrs. Dalloway (1925) de Virginia Woolf. Lea explica porquê: “Estávamos fascinadas pela dimensão de stream of consciousness da narração [do livro] e queríamos tentar aplicar o formalismo da literatura à linguagem do cinema. Em vez de fazermos um filme que fosse puramente ficção, pensámos em pegar em alguém que representasse a sua própria vida, e depois que esse alguém poderia ser uma actriz.” Petra: “Queríamos trabalhar um pouco como se faz no teatro ou na commedia dell'arte, improvisando, com as cenas a surgir dessa improvisação mas de forma menos hierárquica, mais como se fôssemos um colectivo de autores”.
Olivia Corsini, que já conhecia Petra das passagens pelo Brasil do Théâtre du Soleil e por isso se tornou na escolha evidente, recorda que nas primeiras conversas com as realizadoras essa dimensão ambígua já existia. “A ideia era guardar a estrutura de Mrs. Dalloway, com os monólogos interiores e a festa final, mas substituindo as memórias ficcionais da personagem pelas da verdadeira actriz,” diz, antes de explicar porque quis aceitar o desafio de ser o “centro” do filme. “Quando se é actor num colectivo, estamos 40 pessoas em palco e, mesmo quando se tem um papel principal, estamos a partilhar a nossa responsabilidade e os holofotes com toda a gente. Ter artistas interessados na minha pessoa e nos meus pensamentos foi extremamente importante: ver que elas tentavam compreender o que me acontecia e o que isso ia desencadear, as reflexões a que isso levava.”
Este é o meu corpo
Eis senão quando… feliz notícia: Olivia está grávida. “Íamos em digressão com a companhia para a Ásia e estávamos a terminar uma produção quando percebemos que o filme ia mudar porque a Olivia estava grávida,” explica Serge. “A Petra disse-me logo para levar uma câmara e um microfone e filmá-la.” “Assim que engravidou, demos à Olivia um gravador e pedimos-lhe para gravar todos os seus pensamentos, dúvidas, ansiedades, e enviávamos-lhe perguntas,” diz Petra. “Esse diário tornou-se o seu companheiro de viagem mais íntimo, e formou muito o guião do filme, não apenas ao nível da voz off mas também ao nível de inspirar cenas baseadas naquilo que estava no diário.”
Tudo se complicou devido à necessidade de Olivia ter de ficar em casa e mover-se o menos possível na sequência de uma hemorragia interna, literalmente interrompendo a sua vida de actriz. Daí nasceu também aquela que é, para Petra Costa, uma das questões centrais do filme: “Quando se é actor e se está sempre a representar um papel, que tipo de turbulência sísmica acontece quando já não há máscaras a que se possa recorrer? A contradição existe entre aquilo que ela é forçada a representar enquanto mulher, que é uma grávida estática, e aquilo que ela queria ser, que é uma grávida activa. A gravidez é de certo modo a morte da pessoa que ela era até então, e o nascimento de uma nova pessoa, e de uma nova Olivia, que aceita finalmente que as coisas não vão ser iguais.”
Claro que não vão, como se ri Olivia. “O teu próprio corpo acaba por te impor que sejas o centro, porque ficas enorme! Quando andas na rua, as pessoas afastam-se, quando entras num restaurante as pessoas puxam a cadeira para te sentares… A natureza é bem feita, tudo é feito para que tenhas um pequeno momento de protagonismo, o que é correcto porque é um momento em que a mulher é protagonista. Tudo aconteceu de maneira muito sensível; os lugares escolheram-se de modo bastante orgânico.”
Serge, praticamente o único homem no meio deste filme de mulheres (“mesmo na equipa havia muitas mulheres, como a Lisa Persson que foi uma das primeiras operadoras de câmara, ou as montadoras...”), acabou por apreciar o seu estatuto de “secundário” naquilo que seria a história de Olivia. “O meu papel estava, indirectamente, escrito para não estar frente à câmara, acaba por reflectir que eu não queria cair num estereótipo no qual não me revejo. Permitiu-me abordar o meu quotidiano de futuro pai com muita delicadeza e muita atenção, estar lá na medida do possível sabendo bem que tudo o que se fazia era a Olivia que o fazia. Era o momento dela.”
O tabu da maternidade
Esse momento – a gravidez – tornou-se central para a afirmação do projecto, como defende Petra. “Muitos não percebem o efeito que uma gravidez tem na mente de uma mulher, mesmo quando não acontece. Chegadas a uma certa altura da nossa vida, estamos sempre a pensar nisso, como uma presença ausente. Fiquei muito chocada pelo facto de haver tão poucos filmes sobre isso, e mesmo da literatura sobre a gravidez ser muito rara.” Para Lea, “é um tabu tão grande! É um tema muito controverso, muito provocatório. Surpreenderam-me as reacções tão diferentes ao filme...” “Houve quem perguntasse a certa altura ao Ingmar Bergman porque é que ele fazia filmes feministas,” continua Petra, “e ele respondeu que as mulheres são retratadas de modo tão estúpido na maioria dos filmes que ele apenas tentava mostrá-las como elas realmente são. Isso cria muita turbulência quando o tentamos fazer. No Brasil, por exemplo, o filme levantou imensas questões sobre a representação da mulher e sobre os tabus da maternidade que ultrapassaram as nossas expectativas.”
Ainda assim: mostrar desta maneira o desenvolvimento de uma gravidez, num projecto de forma tão fluida como este, implicava também um acréscimo de dúvida para os seus protagonistas, “expostos” de um modo que não lhes é habitual. Afinal, no filme Olivia e Serge chamam-se Olivia e Serge, são actores, vivem em Paris... “Passou-nos evidentemente pela cabeça que poderíamos estar-nos a expôr em demasia,” admite Olivia, “mas eu pelo menos estou contente por ter expulsado essa dúvida muito depressa. Tinha consciência que, quanto mais fundo fôssemos, mais íntimo e universal seria o filme”. “Mas enquanto temos às vezes necessidade que nos ponham nos carris,” contrapõe Serge. “Aqui, havia uma liberdade enorme, mas perguntávamo-nos que estávamos a fazer. Tínhamos vontade de representar mas elas não queriam, «como assim, não querem? Estamos aqui para representar, somos actores!»”
“E em frente a uma câmara!”, ri-se Olivia. “O Serge costuma dizê-lo de forma muito simples. Somos dois actores, existe uma câmara, portanto é impossível não representarmos. Mas creio que elas conseguiram criar uma atmosfera de confiança. Nós fizemos o nosso trabalho de actores, elas o seu trabalho muito sensível e preciso de realizadoras. Nós estávamos na exposição, mas não na análise – essa era a parte delas. Nunca tivemos medo que o material que estávamos prestes a dar se voltasse contra nós. Por isso, penso que ousámos dizer coisas que não teríamos ousado dizer ou contar num quadro mais «frio».” Serge prefere usar a palavra “distanciamento”: “A partir do momento em que a câmara «entrou» na gravidez, conseguíamos falar indirectamente de coisas que não teríamos conseguido abordar na intimidade, das quais teríamos talvez passado ao lado. Pessoalmente, eu navegava pela rodagem como algo que não procurava controlar. Fazíamos as coisas, vivíamos experiências.” “E a parte ficcional existia para nos proteger um pouco,” como diz Olivia. “Dizíamo-nos que, assim como assim, estávamos a representar, e tudo isto poderia bem ser ficção!”
Pelo meio de todas as convulsões e confusões, chegamos assim ao final (feliz) de Olmo e a Gaivota. O filme que Petra Costa e Lea Glob quiseram fazer não é forçosamente o mesmo que acabaram por fazer, ao longo de um processo por vezes “muito doloroso”. (Lea: “Apesar dos desafios, nunca pusemos em causa que devíamos continuar, havia uma espécie de acordo. Mas na verdade subestimámos as dificuldades.”) No entanto, acaba por sê-lo. “O princípio do filme era um dia na vida de uma mulher onde tudo acontece dentro da sua mente e do seu corpo,” reitera Petra Costa. “Isso, mesmo com todas as mudanças, mantém-se no filme.”