O pronto-socorro dos emigrantes em França
Os piores patrões dos portugueses que vão trabalhar para França são, muitas vezes, os próprios portugueses.
A vida de Hugo alterou-se para sempre com um anúncio de jornal. Um restaurante em Givors – terra natal do guarda-redes da selecção portuguesa Anthony Lopes –, a cerca de 25 km de Lyon, procurava um cozinheiro em Portugal. Com o curso de Hotelaria e Turismo no bolso e muito currículo no ramo da restauração, respondeu e foi seleccionado. Ao chegar a França, a realidade que o aguardava estava longe de corresponder ao que lhe fora inicialmente oferecido pelos novos patrões, também eles um casal de emigrantes portugueses. O ordenado era substancialmente mais baixo do que o salário mínimo francês, trabalhava mais de 12 horas por dia, não tinha folgas e dormia num armazém, sem condições mínimas de habitabilidade.
Sem falar francês e nenhum conhecimento na pequena localidade onde passou a residir, este natural de Esmoriz, agora com 38 anos, acabou por lembrar-se de uma antiga amiga, que conhecia de Aveiro e que emigrara, anos antes, para Lyon. Um telefonema bastou para Carla Lobão o informar sobre os seus direitos e deveres como imigrante em França.
Ajudou-o a formular a carta de despedimento, com justa causa, e Hugo prosseguiu com a sua vida. Com o tempo montou um negócio próprio e continua a viver em Givors, onde nos conhecemos. Já Carla, encorajada pelo amigo e perante os muitos outros casos de portugueses desamparados nas regiões de Lyon e Clermont-Ferrand (onde está localizada uma das maiores comunidades de portugueses neste país), a quem já ajudava pro-bono, acabou por montar uma pequena empresa para desenvolver esta actividade e conseguir viver dela. Chamou-lhe CL Services e abriu actividade, oficialmente, em Janeiro deste ano e é uma espécie de “Loja do Cidadão” para os emigrantes nacionais em França.
Encontrámo-nos no seu pequeno escritório, numa zona industrial nos arredores de Lyon, onde explicou pormenorizadamente a sua ideia: “Muitas pessoas chegam aqui sem qualquer referência ou contactos e, nos primeiros tempos, sentem-se completamente perdidas. Eu, entre outras coisas, ajudo-as a tratar de todos os assuntos burocráticos, jurídicos e relacionados com os seus direitos laborais.”
Trata de certidões de nascimento, abonos de família, rendimentos mínimos, assistência médica, impostos, seguros, cartas de condução, renovações dos cartões de cidadão, pedidos de reforma a nível internacional, procurações, criação de empresas ou até formulação de currículos dentro das exigências francesas. Tem ainda acordos com as ordens dos advogados em Portugal e França para prestar aconselhamento jurídico.
A última grande vaga de emigração para França começou em 2008, com o início crise em Portugal, e só nos últimos tempos começou a abrandar. Estão por todo o lado na região de Lyon e arredores. A maior parte dos recém-chegados, como acontecia nos anos de 1960, começa por encontrar trabalho nas obras ou nas limpezas. Esta é uma forma de iniciar a sua adaptação, até dominarem a língua, o que pode levar mais ou menos tempo, dependendo da aptidão de cada um. Muitos acabam mais tarde a exercer actividades bem diferentes, mais de acordo com as suas habilitações académicas ou profissionais, quando é o caso.
Foi precisamente o que ocorreu com Carla. Veio para França, em 2003, com 19 anos e começou por trabalhar como empregada doméstica. Em apenas três meses, já dominava a língua e transitou para outros trabalhos, especializando-se, nomeadamente, na área de gestão comercial e facturação, antes de se aventurar neste negócio próprio.
Carla conta que os piores patrões dos emigrantes em França são os próprios portugueses. “A sua fama aqui é horrível. São abusadores e muitos retiram autenticamente os direitos aos trabalhadores que contratam. Fazem o que querem, aproveitando-se do facto da barreira linguística.” Muitos acabam sentados no seu escritório, desesperados, sem saber fazer valer os seus direitos. “Antes da CL-Services aparecer, as pessoas não sabiam para quem se virar: ou submetiam-se à exploração da entidade empregadora ou iam-se embora.”
Recentemente tratou do caso de um português a quem o patrão (também ele português) emitiu folhas salariais falsas durante um ano. Como não lhe fora descontado nada para a segurança social durante esse período, não tinha, oficialmente, direitos em França. Em alguns casos, as situações chegam a extremos, com pessoas com ordenados em atraso, sem luz, água e dinheiro para comer. Carla Lobão é também conselheira sindical e defende muitos destes clientes no Tribunal do Trabalho, em parceria com um especialista francês.
Nas questões administrativas, o seu principal concorrente é o Consulado português em Lyon, mas a sua vantagem é prestar um serviço personalizado e célere, que impede a perda de dias de trabalho. “Os meus clientes têm surgido muito através do boca-a-boca e tenho alguns que me contactam de outros países fora da França.”
Depois desta conversa, de regresso ao meu hotel, encontrei a habitual empregada doméstica, que trata, sozinha, dos cerca de 30 quartos da residência. Estava a falar ao telemóvel e apercebi-me que era portuguesa. Cumprimentamo-nos e confidenciou-me que estava muito insatisfeita com as condições de trabalho que encontrou em Lyon, onde chegou há poucos meses. Falei-lhe da Carla Lobão e ela mostrou-se imediatamente interessada. Depois de lhe dar o contacto, disse-me que era exactamente o género de apoio que precisava.