O bairrismo das rusgas de S. Pedro que “só quem ama” compreende
O despique das rusgas é o “pico do bairrismo” poveiro. O desfile dos seis bairros tradicionais da cidade dão início à grande noitada do S. Pedro da Póvoa de Varzim, esta terça-feira.
Por esta altura, as ruas e as janelas das casas dos bairros poveiros são ornamentadas com as cores de cada bairro. Cores que vestem também os moradores (e ai de quem ouse não as usar). Nestes dias de festa, cada um torce pelo seu bairro e os apoiantes estendem-se por toda a cidade, comportando-se como adeptos de futebol, que seguem ferverosamente a sua equipa, o seu bairro de afeição, para onde quer que vá. A tradição vem de 1962 e os bairros tradicionais - Norte, Sul, Matriz, Belém, Mariadeira e Regufe - competem entre si nas “rusgas”, desfiles com dança e música. Tal como no futebol, a grande rivalidade é entre o Sul e o Norte.
Na sede dos Leões da Lapa Futebol Clube, só se vê verde e branco. Nestas semanas que antecedem as festas, são estas as cores que imperam no Bairro Sul. Mão na anca, ar imponente mas com um sorriso no rosto e com a concentração de gente grande, eis a tricana (rapariga poveira). Ao seu lado está alinhado o par. É assim que começa mais um ensaio da rusga infantil deste bairro, o último antes do desfile que marca o início da noitada de S. Pedro. E a casa está cheia. Os vizinhos juntam-se para assistir ao ensaio, mesmo com um Croácia-Portugal no prolongamento e, em risco, a presença de Portugal nos quartos-de-final do Euro 2016.
À porta, uma banca vende merchandising: chapéus, cachecóis, camisolas ou t-shirts, para a população usar nestes dias. Todo o bairro contribui e “cada um paga o que quer”. A representação do Bairro Sul não se fica pelas tricanas nem pelos seus pares, a população sai em peso e faz de claque da sua rusga para onde quer que vá.
Este ano, "Bairro Sul, o amor da minha vida" é o tema que serve de inspiração às coreografias, às “marcações”, na gíria. A ensaiadora, Ana Santos, vai orientando 24 pares de crianças, da rusga infantil, e vai afinando-lhes os passos da dança com os arcos com o leme verde e branco. “Roda”, grita Ana, ao mesmo tempo que se canta a marcha de 2016: “Meu Bairro Sul/Amor profundo/Tens as tricanas/Mais bonitas deste mundo”.
Para além da rusga infantil, há também a dos casados e a dos séniores. Luísa Couto ensaia a rusga dos casados há quatro anos e diz ao PÚBLICO que foi “ficando” depois de ter “adorado” o primeiro ano. Luísa conta que o trabalho se faz “de ano para ano”, mas que os ensaios com os 24 pares começam depois da Páscoa.
Em terra de pescadores, o barco é o símbolo do bairro. “Vai surgindo uma ideia aqui, uma ideia ali e vão-se juntando as peças”. Um trabalho que passa, não só pela coreografia, mas também pela escolha das marchas (canções) e por “pôr os arcos nas mãos delas (tricanas) ”.
Muda o bairro, muda a dança
Notam-se as “fronteiras” entre os bairros pelas mudanças de cores nas iluminações da rua. À entrada do Centro de Desporto e Cultura Juve-Norte, já é o azul e o amarelo (agora mais dourado) que predominam. Também aqui se ensaiam as rusgas. Este ano, o slogan é "Bairro Norte, um amor infindo", ao qual de associa o símbolo do bairro, a estrela do Norte (de cinco pontas), e um símbolo do infinito a trespassar a estrela. E é tudo feito “com amor ao bairro”. Quem o diz é Sérgio Postiga, ensaiador da rusga sénior há sete anos, que também já por lá dançou. “Cada bairro defende as suas cores, é este o estímulo para esta movimentação enorme”.
“Ei, ei, ei, ei o Bairro Norte é que é!”, gritam os populares à entrada da marcha sénior para o ensaio. São 24 pares, solteiros dos 15 aos 28 anos. “Quem faz 29 ou casa deixa de poder ir e há vagas para malta nova entrar”, explica Sérgio ao PÚBLICO. Um trabalho prévio que começa no final de Abril com a escolha dos pares seniores e infantis que representam o bairro nas festas. Há prioridade sempre para quem dançou no ano anterior. Depois, é necessário “formar a roda” e escolher os lugares de destaque a que se acede por “antiguidade”. Depois, é partir para as coreografias. “Por norma, todos os anos levamos seis marchas do nosso repertório”, explica Sérgio. Com as marcações preparadas previamente pelo ensaiador, em dois meses treinam-se, “até à exaustão”, as 48 pessoas, “para nenhum pé estar fora do lugar em nenhum tempo”, conclui.
As meninas de coroa de flores azuis e amarelas na cabeça desfilam com o seu par para as suas posições. Muitos começaram já na rusga infantil, tendo continuado ao longo dos anos. É o caso de Iolanda Castro que, com 19 anos, faz já a sua nona participação. A tocata, composta por dez elementos, dá o mote para o início da coreografia quase no ponto para o dia 28. “É o pico do bairrismo”, salienta o ensaiador.
Nessa noite, cada bairro visita o vizinho, movendo uma claque de milhares de bairristas que entoam os versos da marcha, também aqui, “até à exaustão”, diz Sérgio. Do lado do Bairro Sul, Luísa afirma que têm uma claque “imensa”. “Nós costumávamos ir ao S. Pedro da Afurada e chegamos a levar dez autocarros”, conta a ensaiadora.
Na sexta-feira seguinte, dia 1, as seis rusgas saem no Cortejo Luminoso, na Avenida dos Banhos. No sábado, cada rusga dança apenas no seu bairro. E, para terminar, no domingo, o encontro é no Estádio do Varzim onde cada rusga tem 20 minutos para actuar e onde as claques se manifestam efusivamente. “É uma folia inexplicável. É um amor que a gente sente. Cada um defende o seu bairro”, destaca Luísa.
O traje da tricana
O ex-libris da rusga é a tricana, o traje da mulher poveira da década de 50, 60 que se mantém inalterável. Cada rapariga é responsável pelo seu traje, assim como o homem que vai de calça preta e de camisa branca. As meninas mantêm o corte da blusa, da saia e do avental. Mas os tecidos acompanharam a evolução dos tempos, e, actualmente, “o que há de mais rico são as rendas”, explica Sérgio Postiga. Cada uma das tricanas pode gastar cerca de 1000 euros para se trajar. “É uma exorbitância mas todos os anos, as raparigas têm uma blusa e um avental novo. Ninguém repete a roupa”, explica Sérgio. No Bairro Sul, o traje tem também o seu “rigor” - tem de ser sempre verde e branco ou verde e prata mas “cada uma faz o seu”, acompanhado de um puxo tradicional no cabelo que só se faz em certos cabeleireiros da cidade.
No desfile da noite de S. Pedro, as tricanas e os seus homens envergam durante cerca de cinco horas “um arco de três quilos e meio, dançam em cima de saltos de 10 cm, de saia travada e de avental a pesar cerca de oito, dez quilos”, reconhece Luísa Couto.
É o reflexo de um trabalho de meses, que envolve muita gente mas que é feito com "muito amor, muita paixão pelo bairro e é essencialmente isso que nos obriga a ser sempre cada vez melhores", afirma Pedro Casanova, presidente dos Leões da Lapa. Já José Gonçalves Moita, presidente da associação Juve-Norte, admite que a ajuda da câmara “não dá para metade destas festas”. A câmara dá um montante de cerca de 25.800 euros aos bairros Norte, Sul e Matriz. O valor total da festa “ronda sempre os 45 mil, 50 mil euros”, diz o presidente. Um valor que é alcançado com os peditórios dos bairristas e com patrocinadores que “ajudam a fazer a festa”.
Apesar de as festas de S. Pedro não serem seculares, têm apenas 54 anos, são “um rastilho de pólvora e toda a cidade é uma fogueira imensa na noite de 28 de Junho, onde há uma movimentação da cidade por completo”, remata Sérgio Postiga. Um bairrismo que é “saudável” e em que cada um tem a “correr nas veias as suas cores”, diz Pedro Casanova. “Se calhar eu passo estes dias sem falar com alguns amigos, mas passadas as festas voltamos a falar como se nada fosse”, confessa Pedro.
Texto editado por Ana Fernandes