"Brexit" e nacionalismo

O nacionalismo volta a assombrar a Europa 70 anos depois da II Guerra Mundial. A paz garantida pelas várias instituições europeias é ou dada por garantida ou considerada irrisória. O referendo inglês veio colocar o nacionalismo no centro do debate político.

I. A campanha

 A rápida análise da campanha pelo referendo no Reino Unido, vista agora a partir do resultado final, mesmo sem ter todos os dados na mão, pode ser sintetizada em sete pontos:

  1. A saída da União Europeia só ganhou apoio significativo quando se concentrou exclusivamente no problema da imigração.
  2. A imigração foi seccionada à medida do eleitorado: a imigração não europeia, que constitui em média metade das entradas anuais, foi descartada.
  3. Os problemas sociais estiveram ausentes do debate; os trabalhadores britânicos, na lógica do Brexit, beneficiariam simplesmente com a saída da UE e a redução drástica dos imigrantes.
  4. A divisão religiosa esteve completamente ausente do debate; a islamofobia e a judeofobia foram evitadas para concentrar as atenções na imigração europeia.
  5. O alerta para os problemas económicos e financeiros suscitados por uma eventual saída da União Europeia, eixo da campanha pela permanência, não conseguiu contrariar o argumento de ‘recuperação da nacionalidade’ ou de ‘recuperação do controlo das fronteiras’.
  6. O espectro de uma ruptura do Reino Unido, com a separação mais que provável da Escócia, não funcionou como impedimento ao voto de saída.
  7. Não houve qualquer informação relativa aos direitos sociais promovidos pela União Europeia, nomeadamente quanto a direitos de mulheres e minorias, bem como às intervenções anti-monopolistas da Comissão.

A selecção da imigração de origem europeia como alvo da campanha pela saída do Reino Unido da União Europeia pode parecer surpreendente à primeira vista, pois pelo menos metade da imigração registada nos últimos dez anos é constituida por não europeus, ou seja, dentro da competência do governo britânico para impedir a respectiva entrada. Ninguém levantou o problema.

A aparente anomalia surgiu de forma explícita no meio da campanha quando Boris Johnson disse que não estava em questão a imigração indiana e paquistanesa. Ele sabia, enquanto ex-mayor de Londres, que uma enorme parte desta imigração já tinha acedido à cidadania britânica e eram votantes, ao contrário da esmagadora maioria dos cidadãos europeus imigrados. Há já indicação que parte das comunidades de origem indiana em Birmingham votaram pela saída. Embora aparentemente este voto não seja maioritário, é um caso interessante de sentimento de protecção contra novas chegadas de outras origens.

A Turquia foi o único alvo extra-comunitário dos ataques do Leave, que agitou a perspectiva de uma próxima adesão do país à União Europeia. O desmentido não passou. Tratou-se da única referência capaz de mobilizar a islamofobia, mas mesmo assim sem ter relação directa com a esmagadora maioria das comunidades residentes de origem asiática.

A concentração implícita da campanha a favor da saída nos imigrantes de origem europeia tocou todas as camadas sociais, desde a classe trabalhadora, submetida a uma competição altamente competente dos imigrantes do Leste europeu (construção civil, indústria, serviços semi-qualificados), à classe media e alta submetida à competição de alemães, franceses e italianos, incluindo na City. É preciso dizer que há poucas grandes empresas controladas e geridas por ingleses. Apenas quatro exemplos: a empresa de sapatos clássicos ingleses Church’s foi adquirida pela Prada, a Land Rover e a Jaguar pelo grupo Tata, o Rover Group (incluindo o Mini) pela BMW, a Rolls Royce e a Bentley pela BMW e pela Volkswagen.

II. Os resultados

A primeira análise dos resultados mostra a divisão urbano/rural, ou melhor, a tendência das grandes cidades em votarem pela permanência na UE, enquanto nas vastas zonas do interior, aliás pouquíssimo relacionadas com a agricultura, a concentração de diferentes camadas sociais votaram pela saída. Temos aqui uma primeira indicação do contraste entre o ambiente cosmopolita de cidades como Londres, Liverpool, Manchester ou Bristol, sem esquecer os centros universitários de Cambridge e Oxford, contra a vasta maioria do campo, onde o nacionalismo prevaleceu. Birmingham é a excepção, mas mesmo assim o Leave teve uma fraquíssima maioria.

A segunda característica dos resultados tem a ver com a faixa etária. O gráfico da votação em função da idade é extraordinário: verifica-se uma maioria esmagadora a favor da permanência na faixa entre os 18 e 24 anos, 73%, que diminui sucessivamente mas é ainda maioritária até aos 35-44 anos, para dar lugar a uma maioria favorável à saída, que funciona em ordem crescente, de 56% na faixa 45-54 anos a 60% acima dos 65 anos.

Finalmente, a educação funcionou como um dos grandes factores neste referendo, pois a população mais instruída votou em maioria pela permanência na UE.

Mas a divisão mais perigosa para a unidade política do Reino Unido corresponde à votação maioritária da Escócia e da Irlanda do Norte pela UE. Na Escócia os dirigentes do Scottish National Party ameaçaram já avançar com um novo referendo sobre a questão da independência e futura adesão à União Europeia. Como no século XIX, a emergência do nacionalismo predominante, neste caso inglês, estimula como resposta o nacionalismo das minorias escocesa e irlandesa.

A ‘recuperação da nacionalidade’ ameaça assim acabar com o reino compósito britânico. É um dos efeitos imediatos do nacionalismo que deve fazer-nos reflectir a vários níveis sobre o puzzle político em que assenta a Europa.

Mas há mais: sabemos que a população residente em Inglaterra representa 87% da população do Reino Unido e que a população branca atinge 84% da população do Reino Unido. Dado que a população inglesa, à excepção dos grandes centros urbanos, votou em larga maioria pela saída, não é de descartar um elemento não dito, em parte provavelmente inconsciente, de pureza da raça nesta votação. Este elemento, justamente esquecido desde as atriocidades perpetradas em seu nome durante a Segunda Guerra Mundial, parece estar de volta.

III. O nacionalismo

O problema da identidade nacional foi sem dúvida o grande factor de votação pela saída da União Europeia. No caso inglês foi equacionado com a atitude anti-imigrante. O elemento inquietante neste debate é a total ausência do problema da desigualdade social que tem estado a subir no Reino Unido, assim como em todo o mundo ocidental, desde os anos de 1980. É este problema que faz com que uma boa parte da população se sinta excluída do processo de globalização. O movimento nacionalista, do UKIP aos conservadores mais à direita, opôs-se ao cosmopolitanismo dos conservadores centristas (agora em minoria) e da maioria dos trabalhistas. A votação no Norte de Inglaterra denota uma clara transferência de voto do Labour para o UKIP e pode prenunciar um relativo esvaziamento do Labour.

O caso inglês parece estranho ao observador estrangeiro, pois tem um dos índices de desemprego mais baixos da Europa (5%), assim como um índice de crescimento dos mais altos (2%), tendo-se afirmado como a segunda economia europeia a seguir à Alemanha. A precariedade do emprego e a redução das condições de vida são reais. O outro lado não dito da campanha pelo referendo é o efeito benéfico da imigração, não só por aumentar a procura, estimulando o crescimento, mas também por fornecer especialistas em diversas áreas necessitadas, nomeadamente a saúde.

O nacionalismo como resposta a problemas sociais escondidos parece um regresso ao passado. Trata-se de uma resposta emocional que atenua a febre mas não resolve a doença. Na via de turbulência escolhida, consciente ou inconscientemente, pelo eleitorado inglês, com a dose habitual de demagogia nestas circunstâncias, a crise económica é uma ameaça real. A libra teve na sexta-feira uma queda de 10%, depois corrigida, mas mesmo assim o dobro da queda na quarta-feira negra de 16 de Setembro de 1992, que forçou a libra a sair do mecanismo monetário europeu. Existe pouca margem de manobra, pois a economia britânica é largamente dependente dos fluxos de capitais, que têm saído do país de forma massiva nos últimos meses; a queda das bolsas, sobretudo em Londres, é um sinal de possível regresso a recessão.

A questão preocupante é saber como os nacionalistas irão recompensar os votantes, que esperarão uma solução miraculosa dos seus problemas. A resposta clássica encontrava-se na guerra, forma de ocupar populações desempregadas ou em trabalho precário e divergir as atenções para os inimigos externos, reais ou imaginários. Nas actuais condições institucionais europeias estamos ainda longe dessa fase, embora a acumulação de refugiados com as guerras civis no Norte de Africa e no Médio Oriente estejam a testar a capacidade de resposta do Velho Continente. A expansão nacionalista da Rússia na Ucrânia é um elemento desestabilizador que não pode deixar de ser tido em conta.

O nacionalismo, finalmente, está a espalhar-se como uma mancha de óleo na Europa de Leste. A extrema direita está mais activa que nunca, curiosamente em países de passado comunista, não em países de passado fascista. A França vive uma curiosa fase de revivalismo activista da extrema esquerda ao mesmo tempo que assiste ao avanço metódico da extrema direita. É verdade que a história não se repete, mas traz-nos à memória os anos de 1930.

A União Europeia, por seu lado, não soube reformar-se e a política do euro criou um bloqueio do qual tem que se livrar para sobreviver. O problema é empreender uma transição que não implique mais sofrimentos de populações abusadas por políticas de austeridade que agravam as assimetrias e obstaculizam as possibilidades de desenvolvimento económico.

A desagregação da União Europeia sob o impacto da subida do nacionalismo como efeito dominó da saída britânica não constitui uma alternativa democrática e social. O nacionalismo impõe um olhar para dentro e um consumo de energias em posição de relativo isolamento num mundo cada vez mais globalizado. Fechar fronteiras e quebrar laços com um enorme bloco económico, ao mesmo tempo que se tenta equiparar ‘independência’ com ‘ser-se global’, como proclama Boris Johnson, é um paradoxo ao qual a história dará resposta. Só espero que o período da União Europeia não venha a ser considerado ironicamente no futuro como a idade de ouro dos direitos sociais, antes da devastação provocada pelo nacionalismo e pelo impacto da robótica. É para evitar essa situação que devemos encontrar novas formas de pensamento e acção política numa perspectiva de reforma e renovação radical das instituições europeias. 

Historiador, Professor Charles BoxerKing’s College London

 

 

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