O feitiço e a feiticeira

A integral de contos de Clarice Lispector é uma experiência literária e biográfica. São 85 histórias organizadas cronologicamente que permitem acompanhar a evolução de uma das mais enigmáticas vozes do século XX.

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Ela morreu em 1977, aos 57 anos. O feitiço, como refere Benjamin Moser no prefácio, não ENRIC VIVES-RUBIO

Em Obsessão, a então jovem Clarice Lispector criou uma protagonista numa espécie de dormência quotidiana que um dia se descobre, angustiada, no centro de uma dupla aprendizagem: a de que a verdadeira intensidade da vida está no sofrimento e que “é preciso saber sentir, mas também saber como deixar de sentir”, ou “encantar e desencantar”, como lhe diz Daniel – o homem que vem injectar inquietude – no ele chama de lição de libertação. Quando escreveu este conto, Lispector tinha vinte anos, era estudante de Direito, ainda não casara nem tivera filhos, mas a sua escrita já continha um dos seus mais persistentes traços biográficos: é no desconforto ou no desamparo que as suas personagens se notam vivas.

“... tudo perdoo aos que não sabem se prender, aos que fazem perguntas. Aos que procuram motivos para viver, como se a vida por si mesma não se justificasse”, ouve-se a voz de Cristina, a narradora dessa segunda história do volume Todos os Contos (Relógio d’Água) que reúne a totalidade da produção contista de Lispector. “Nas oitenta e cinco histórias deste livro, Clarice Lispector conjura, antes de mais, a própria escritora. Da adolescência auspiciosa à maturidade confiante, e desta à implosão de uma artista à medida que se aproxima da morte – e a convoca –, descobrimos a figura, maior do que a soma das suas obras individuais, que o Brasil adora”, escreve o seu biógrafo, Benjamin Moser, na introdução a esta edição inédita onde começa por estabelecer um paralelismo entre o glamour da mulher que terá contaminado a prosa que ela produziu, e que está muito próximo do feitiço. Clarice será, nesta perspectiva, uma feiticeira literária como sugeriu um amigo citado por Moser. “Tenha cuidado com Clarice”, disse esse amigo a um leitor, concluindo: “Não é literatura, é bruxaria”.

Como explicar o feitiço? Experimentando o seu efeito enquanto leitor desta mulher nascida em 1920, na Ucrânia, filha de judeus que procuraram refúgio no Brasil era ela muito pequena. Cresceu no Recife, ficou órfã de mãe aos nove anos e no fim da adolescência mudou-se para o Rio de Janeiro onde estudou Direito e pouco depois se casou com um diplomata. Foi sempre escrevendo. Em 1943 tornou essa escrita conhecida quando publicou Perto do Coração Selvagem, o seu primeiro romance. Na biografia Clarice Lispector, Uma Vida (Civilização, 2010), Benjamin Moser conta esse percurso colado à literatura, o de uma mulher carregando um desconforto e transformando-o em sedução literária. Nos nove romances ou nestes contos aqui apresentados segundo uma ordem cronológica, o que permite avaliar a evolução não apenas da escrita de Lispector, como do que eles dizem da sua biografia.

Estamos perante uma escrita do íntimo, quase sempre construída a partir de um sentimento da falta, de uma ausência sentida mas tantas vezes difícil de nomear, vivida quase sempre em solidão e num diálogo difícil, sufocado, com o mundo. São mulheres em território devastado, experimentando a dor, em conflito interno ou contra o lugar que a sociedade lhes reserva, e com Lispector num permanente exercício de linguagem para materializar o que só parece existir enquanto abstracção, no subconsciente, longe da vista. Essa escrita, também de combate, feminista, quase nunca sai do íntimo, no entanto.

É a mulher que intimamente se tenta ajustar ou se afasta do que dela é esperado. Em casa, no trabalho, perante uma paisagem, sob efeito da passagem do tempo. E com o leitor a sentir-se um espectador privilegiado dessa angústia, desse desajuste quase permanente. Seja no papel de amante, filha, mãe, de mulher. “Antes que Armando voltasse do trabalho a casa deveria estar arrumada e ela própria já no vestido marron para que pudesse atender o marido enquanto ele se vestia, e então sairiam com calma, de braço dado como antigamente. Há quanto tempo não faziam isso?” É o arranque de A Imitação da Rosa, terceira história de Laços de Família, livro de 1960 quando vivia nos Estados Unidos, mulher de diplomata. É um exemplo do fulgor e minimalismo que caracteriza muita da escrita de Lispector e de que faz parte Uma Galinha, pequena obra-prima de manipulação da língua portuguesa, de domínio do ritmo, da poética, quase luminosa até nos levar bruscamente ao abismo, à tal sombra que parece inevitável. Uma paródia até ver. Uma galinha escapa ao almoço de domingo a que estava destinada. Foge. É um animal feminino com características humanas e conotadas com um ideal feminino.

“Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.” Uma paródia de sentidos que prossegue com a galinha a reclamar duas capacidades essenciais: apatia e sobressalto. Outra caricatura de um feminino que Lispector combate, mas de que parece também ser refém. Por cultura, educação, religião. Muitas das suas mulheres são vítimas de uma letargia que as consome. O que Lispector faz sempre, qualquer que seja o sentimento ou condição que explora, é aprofundar ao limite do suportável. A apatia ou o sobressalto. O sagrado e o obsceno, a solidão ou a felicidade, a dor, o fim. “Tive uma impressão de onde resultaram algumas linhas vagas, anotadas apenas pelo gosto e necessidade de aprofundar o que se sente”, disse sobre o início de Feliz Aniversário, outro conto de Laços de Família, numa das raras vezes em que aceitou falar do seu processo de escrita. Esse texto surge como apêndice deste volume essencial para se perceber o génio mas também a evolução da escritora Clarice Lispector. Ela morreu em 1977, aos 57 anos. O feitiço, como refere Benjamin Moser no prefácio, não.   

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