Inquérito à CGD envolve políticos, gestores e até governadores do Banco de Portugal

Entre 2002 e 2007, o Estado aplicou 650 milhões na CGD. Agora, já soma 4350 milhões, e pode subir até aos 8000 milhões devido a heranças passadas. Valores que reflectem, em grande parte, decisões de gestão que englobam várias personalidades ligadas aos partidos e também aos supervisores.

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Com Santos Ferreira, e Armando Vara, o banco público assumiu-se como o pivô da estratégia política, financeira e económica de José Sócrates Pedro Cunha

A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que será constituída por iniciativa do PSD para apurar o que correu mal na Caixa Geral de Depósitos (CGD) terá de avaliar actos de gestão imputados a administrações executivas que integraram dois governadores, Carlos Costa e António Sousa, e vice-governadores do Banco de Portugal, José Ramalho e José Matos. Entre 2002 e 2012, o Estado, o único accionista, injectou no maior banco do sistema 4350 milhões de euros, verba a que se irá juntar agora entre 2500 milhões e 4000 milhões. 

Nos últimos 13 anos o Estado capitalizou a Caixa em 4350 milhões de euros, incluindo os 1650 milhões aplicados em 2012 (directamente e por via de um empréstimo de 900 milhões de capitial contigente, os Coco’s). Se a este valor somarmos os 4000 milhões mencionados pela comunicação social como a necessidade adicional de capital, então os reforços de capital vão superar os 8000 milhões de euros. E este é um dos temas que a oposição pretende ver esclarecido, numa CPI que venha a ser constituída para apurar como foi possível ao Estado colocar na Caixa fundos equivalentes a quase 5% do PIB.

Antes da crise bancária, entre 2002 e 2007, o Tesouro apenas tinha sido chamado a subir o capital da Caixa em 650 milhões. E, nesse período, recebeu 1400 milhões de dividendos. Um saldo positivo, mas que muda nos anos pós-colapso financeiro. Entre 2008 e 2012 o Estado meteu na instituição 3700 milhões, valor que inclui a capitalização de 900 milhões de CoCos e um aumento do capital de 750 milhões. Nesses quatro anos, o banco entregou ao accionista 890 milhões de euros de dividendos. Mas há um dado a ter em conta: em 2010, por exemplo, o BdP recomendou aos bancos que não remunerassem o capital para preservarem os rácios de solidez.

Ao longo dos anos, o maior banco do sistema contou com uma governação muito espartilhada entre o PS, o PSD e o CDS. E onde marcaram presença nas várias administrações figuras com sensibilidades distintas como, por exemplo, os social-democratas Faria de Oliveira, Vítor Martins, Mira Amaral ou os centristas Celeste Cardona e Nuno Fernandes Thomaz. Do campo socialista surgem Armando Vara (arguido em vários processos-crime), Maldonado Gonelha, Carlos Santos Ferreira, Francisco Bandeira (que esteve no BPN após absorção pela CGD), Rodolfo Lavrador ou Vítor Fernandes (hoje administrador do Novo Banco).

Muitos destes gestores integraram equipas hoje associadas a processos de concessão de crédito discutíveis, sem os colaterais necessários e sem condições de poderem ser pagos, em parte ou na totalidade. E conectadas a investimentos financeiros que descuraram os interesses da instituição pública que, nos últimos cinco anos, registou perdas de 2000 milhões e contabilizou imparidades (verbas que o banco reconhece que não vai recuperar) de 6000 milhões de euros. Deste bolo, 4200 milhões são créditos incobráveis e 1900 milhões investimentos ruinosos.

Decisões com custos

Um quadro que espelha ainda um caminho de internacionalização que não teve sucesso em todas as geografias. Em Espanha, a operação da Caixa revelou-se descontrolada ao contribuir com mais de 400 milhões de prejuízos para as contas do grupo estatal. O banco deu créditos em larga escala a grandes grupos espanhóis como a Pescanova e o La Seda (sob inquérito judicial por dolo), e que, com a crise económica, entraram em insolvência. E financiou grupos imobiliários falidos. Faria de Oliveira, hoje na presidência da associação do sector, APB, e Rodolfo Lavrador, a quem o banco público veio mais tarde a colocar numa “prateleira dourada” como gestor da filial em Nova Iorque, foram os defensores do negócio em Espanha.

No Banco de Portugal, a entidade que supervisiona o sector financeiro e que deve assegurar o cumprimento das boas práticas, estão hoje dois antigos administradores executivos da CGD: o actual governador, Carlos Costa, que exerceu funções entre 2004 e o final de 2006, com o pelouro internacional e a presidência do Banco Caixa Geral; e José Ramalho, o braço direito de Carlos Costa no BdP, e presidente do Fundo de Resolução. Ramalho esteve na comissão executiva da Caixa entre 2000 e 2010, com responsabilidades nos mercados financeiros e na gestão de activos. Do BdP para a Caixa saiu em 2012 José Matos, que foi vice-governador de Vítor Constâncio, de 2002 a 2010, e número dois de Carlos Costa até 2011. Hoje está de saída do grupo para dar entrada ao ex-vice-presidente do BPI, António Domingues.

Um dos rostos mais emblemáticos da Caixa, na década passada, foi o do ex-secretário de Estado das Finanças e do Comércio Externo de Cavaco Silva. António de Sousa esteve como governador do BdP entre 1994 e 2000, ano em que assumiu a liderança da instituição bancária. E a sua gestão ficou marcada por alguns incidentes. Em 2002, foi acusado pelo ex-presidente do BCP de usar a Caixa para especular contra o título BCP, o que levou Jardim Gonçalves a ir queixar-se junto da tutela. Hoje, Sousa está ligado à ECS, um fundo private equity que negoceia em recuperação de crédito e é, por inerência, consultor do BdP.

Mas a 25 de Fevereiro de 2004, o PÚBLICO dava conta de outra polémica ao informar que o banco público tinha dado um crédito de 75 milhões ao promotor imobiliário Armando Martins sem o submeter previamente à gestão e à comissão de crédito. A operação totalizava 125 milhões e envolvera um consócio onde estavam ainda o Montepio, o Banif e o BPN. A quantia servira para o empresário comprar a sociedade Imosal, com um único activo, o edifício Atrium Saldanha em Lisboa. O vendedor tinha sido o norte-americano Marc Rich, um financeiro impedido de entrar nos EUA entre 1983 e 2000, data em que foi indultado por Bill Clinton, de quem era amigo.

Dois dias depois, o PÚBLICO avançou com outro dado: dois gestores da CGD, Almerindo Marques e Tomás Correia, tinham escrito às autoridades a denunciar “dezenas de operações (de crédito) irregulares”. São, aliás, decisões desta natureza que estão hoje a pesar nas contas da CGD. Na sequência, a Caixa processou o PÚBLICO e reclamou uma indemnização de 500 mil euros. Os tribunais não lhe deram razão e consideraram válida a informação do PÚBLICO. No BdP, ao que se sabe, não houve qualquer investigação sobre a matéria. 

O banco e a política

O ruído à volta da Caixa não parou em 2004. E até se acentuou, com as guerras de governação que seriam protagonizadas por António de Sousa, o chairman, e pelo ex-ministro da Indústria de Cavaco Silva, Mira Amaral, o CEO. Os dois foram indicados, nesse ano, por Durão Barroso, então à frente do Governo, para gerir o banco. O diferendo acabou por ser resolvido por Santana Lopes (que entretanto substituiu Barroso) ao nomear outro social-democrata, Vítor Martins. Meses depois, com a eleição de José Sócrates, Martins entrou em guerra com o governo socialista e demitiu-se “por não estar disponível para financiar megas projectos”.

Foi então convidado para liderar a Caixa um amigo de António Guterres, Carlos Santos Ferreira, que trouxe consigo outro socialista,  Armando Vara. Na gestão marcaram presença a centrista Celeste Cardona, ex-ministra da Justiça, e o socialista Maldonado Gonelha, ex-ministro do Trabalho, e Vítor Fernandes, hoje no Novo Banco. Isto, para além de Carlos Costa e de José Ramalho, que transitaram da anterior gestão. E esta será a equipa que mais controversa provocou.

Na segunda metade da década anterior, com Santos Ferreira e Vara ao leme, o banco público assumiu-se como o pivô da estratégia política, financeira e económica de José Sócrates: dispôs-se a financiar a construção de infra-estruturas, em Parceria Público Privadas (PPP), a intervir em empresas, onde a Caixa assumia posições, a apoiar facções em disputa em grupos privados. 

Durante o primeiro semestre de 2007, a Caixa financiou em 500 milhões de euros um grupo de 22 accionistas do BCP (onde estavam Joe Berardo, Moniz da Maia/Sogema, Manuel Fino, Teixeira Duarte), na sua maioria envolvidos na guerra contra Jardim Gonçalves. E que compraram 5% do banco. Mas muitos deram em garantia acções do próprio BCP. E quando a cotação se afundou, o crédito ficou a descoberto. Entre os financiados, estavam os promotores da transferência para o BCP de Santos Ferreira, de Vara e de Vítor Fernandes, o que ocorreu no início de 2008.

Na PT, onde chegou a ter 10%, a Caixa posicionou-se em 2006 ao lado do BES e da Ongoing contra a OPA da Sonae e em 2010 apoiou o negócio Oi-PT, hoje sob investigação do Ministério Público. E onde os nomes de José Sócrates, Lula da Silva e Vara, assim como o de gestores da PT, surgem mencionados.

Foi este quadro de promiscuidade entre política e finança, e de ausência de rigor, que, em parte, tem estado na origem das grandes necessidades de capital da CGD. E dentro do BdP há quem considere que Carlos Costa e José Ramalho, pelas funções que exerceram no grupo bancário, estão condicionados para pedir uma avaliação isenta do passado (ainda que nenhum dos dois possa ter responsabilidades directas nos factos polémicos).

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