Fantasia para um carrossel de animais
Três anos depois de Zoo, Victor Hugo Pontes volta novamente o seu olhar para o mundo dos bichos. A partir de O Carnaval dos Animais, de Saint-Saëns, apresenta-nos no Teatro Camões e no Rivoli um desfile de animais com andamento de feira popular.
Composta na leveza de umas pequenas férias, mas também na ressaca de uma mal-aventurada digressão, O Carnaval dos Animais tornar-se-ia a peça mais popular do francês Camille Saint-Saëns. Tão popular que, receoso de ser reduzido a um autor ingénuo ou frívolo, Saint-Saëns proibiu que a obra fosse publicada em vida, tentando fazer vingar as suas composições “sérias”. De pouco lhe valeu. Falecido em 1921, ainda hoje é conhecido como o autor de O Carnaval dos Animais, inventor deste desfile de músicas que tentam transpor para a música a majestosidade do leão, o desatino das galinhas, a frouxidão das tartarugas, a irrequietude dos cangurus, a fixação do passado dos fósseis ou a delicadeza finada do cisne.
A parada de bichos, com movimentos animados pela música, facilmente coloca na cabeça de cada ouvinte cenários como florestas, cascatas, aquários (também previstos por Saint-Saëns) ou selvas. Acontece que a selva que se instalou de imediato na cabeça do coreógrafo Victor Hugo Pontes, desafiado a criar uma peça para a Companhia Nacional de Bailado a partir de O Carnaval dos Animais, não provinha de uma memória mais ou menos longínqua, mais ou menos fantasiosa de savanas africanas ou lagos paradisíacos atrás de uma densa e exuberante vegetação. A “sua selva” chegou-lhe como resquício da infância, de um carrossel delirante, povoado por girafas, cavalos e outros animais ou chávenas de chá rodopiantes, comum nas festas populares país fora, como uma citação aleatória e desajustada de Alice no País das Maravilhas.
Daí que este Carnaval de Victor Hugo Pontes (que dispensa os Animais do título), composição coreográfica para a Companhia Nacional de Bailado em cena no Teatro Camões, Lisboa, até 26 de Junho, e no Rivoli, Porto, a 1 e 2 de Julho, se espraie sobre um cenário encimado por tentáculos luminosos de um carrossel (mas que pode ser também um sol ou um disco voador) e concentre grande parte dos seus movimentos numa superfície ondulada que recorda essa “inebriante” experiência de movimento em aceleração a caminho da tontura (mas que pode ser também uma ilha ou uma montanha). “Isto, para mim, tem um lado de feira popular, do lado encantado das personagens”, confirma o coreógrafo ao Ípsilon. “É uma das ficções que alimenta a construção da peça, como se os bailarinos fossem trabalhadores de uma feira popular”, a criar um espectáculo de entretenimento e espectacularidade entre carrinhos-de-choque e barracas de farturas. Mas nada é tão concreto assim. Idealmente, para Victor Hugo Pontes, cada uma das suas peças fica a pairar “num limbo das múltiplas possibilidades”, não pretendendo impor a sua própria narrativa ao público. As pistas, no entanto, estão lá. Com a subtileza de um néon a tremeluzir.
Na verdade, o carrossel em que são largados os bailarinos encaixa na perfeição nesta ideia de fermentação criativa deixada para o público. Tal como nessoutra selva seria o andamento febril do carrossel a juntar-se à imaginação das crianças para dar insuflar vida em animais fixados ao chão e que só se movem a troco de uma moeda deixada na cabina, também aqui o potencial fantasioso é depositado nas mãos de cada um.
Doutoramento em animais
Victor Hugo Pontes passou alguns dias com os bailarinos no Jardim Zoológico a observar durante horas os movimentos dos animais, a tirar notas e a experimentar a transposição dessa observação para os corpos humanos. Só que isso não aconteceu nem agora nem com este elenco alargado da CNB (37 intérpretes em palco). Isso foi antes, em 2013, quando Pontes preparava Zoo, reflectindo sobre a relação entre observador e observado – “Fiz uma grande pesquisa na altura, já vinha com um doutoramento nessa temática”, graceja. Zoo é recuperado aqui como ferramenta de autocitação a que Saint-Saëns recorreu igualmente, numa acepção quase paródica. Terá sido essa coordenada do seu percurso a motivar o convite de Luísa Taveira, directora artística da CNB, para que criasse a partir d’O Carnaval dos Animais. E logo se impôs uma primeira decisão prática: tendo a peça de Saint-Saëns uma duração pouco superior a 20 minutos, havia que perceber como “esticar” a composição para que sustentasse uma coreografia com o fôlego exigível a um programa de bailado.
Foi então que a CNB avançou com a encomenda a 12 compositores portugueses contemporâneos (entre eles Eurico Carrapatoso, Andreia Pinto Correia, António Pinho Vargas, Carlos Marecos, Luís Tinoco e Mário Laginha) para a criação de uma dúzia de peças inspiradas quer por Saint-Saëns quer pelo imaginário dos animais acrescentados por Victor Hugo Pontes. Conforme explicou ao Ípsilon o maestro Cesário Costa, responsável com Luísa Taveira pela selecção, os 12 trabalharam num modelo de cadavre exquis, compondo para criar pontes entre os vários quadros d’O Carnaval dos Animais original – o elemento contínuo, interrompido pelos novos temas. Foi a partir deste modelo que Victor Hugo Pontes começou a pensar a dramaturgia da sua peça, estabelecendo uma lógica que encadeia a entrada em cena de cada manada, cada banco ou cada cardume, sugerida por uma fisicalidade semelhante ou pela partilha do meio natural em que vivem, ao mesmo tempo que são chamados a palco seres mitológicos como o fauno, a sereia, o cérbero ou a fénix. “Esses animais mitológicos”, defende o coreógrafo, “já são metamorfoses de outros animais, e como gosto muito da ideia da metamorfose e de nem sempre se perceber ao certo que animal está em palco, interessou-me essa carga mitológica e o Carnaval visto como fantasia, mentira, faz-de-conta ou mundo encantado.”
A fantasia e a mentira para Victor Hugo Pontes são vividas na forma como os animais se sucedem em palco, com figurinos que simplificam algumas identificações, mas em que nenhum bailarino se limita a ser um canguru ou um sapo. Pode, por isso, falar-se de um jogo de ilusões permanente, de animais que fingem ser outros animais, como num corso carnavalesco em que as máscaras não duram, assumem várias formas e tanto remetem para a finitude das espécies como para uma recusa humana de ser definido por categorias ou para uma natureza que pode ser contrariada pela construção social e/ou individual.
Se há lutas com embates de cornadura ou machos de peito inchado a disputar a atenção da fêmea, há também música, luzes e movimento alinhados como num documentário de fim-de-semana dedicado à vida animal, coincidindo no tom ameaçador, como se o mundo pudesse tantas vezes obedecer, afinal, a uma mera relação entre presas e predadores. Quanto mais a animalidade se expõe com os seus códigos, embrulhada em fantasia e mitologia, mais parece, por vezes, dolorosamente humana.