Ter uma casa para onde voltar todos os dias com uma família para nos receber pode saber a porto de abrigo mas, tal como tudo, tem o seu preço. Por abdicarmos do factor risco, prescindimos paralelamente da magia de todos os momentos surpreendentes em que a vida nos dá um soco na boca do estômago.

E precisamos de muitos, cada vez mais e com mais força. Há quem diga que ser negativista é quando os acontecimentos nefastos têm um poder de surpreender muito superior ao dos acontecimentos positivos. Mas isto acontece, provavelmente porque a nossa devoção à existência não é total, tendo perdido algures pelo caminho a capacidade de saborear algo, seja o que for, sem um misto de desconfiança e retracção.

Porque já vimos tanto e já passamos por tanto, ou pelo menos é o que insistimos em dizer. E também porque estamos formatados pelo e para o trabalho, pelo e para o meio-ambiente, pelos media e pela rotina de segurança que montámos para segmentar os acontecimentos.

Vício cartesiano

Assim podemos ter "templates" de emoções prontos para cada situação, porque nada é novo. Tal como um nutricionista que faz da comida apenas a soma de nutrientes também nós fazemos da existência apenas um emaranhado de fórmulas e equações sem nenhum sabor.

E sem abandono e entrega não pode existir verdadeira apreciação, apreciação essa que jamais poderá subjugar o nosso vício cartesiano de catalogar experiências e emoções. Enquanto isso, a magia que deveríamos sentir esbate-se.

Já as dores a que não conseguimos fugir ganham um sabor cada vez mais pungente. Porque nas nossas fantasias totalitárias e antropocêntricas onde é possível controlar tudo, a dor é de evitar a todo o custo. Afinal, foi para isso que abraçámos a rotina em primeiro lugar, para encontrar segurança, trocando a garantia de não morrer de fome pela garantia de morrer de tédio.