Trump e os “minitrump”

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1. A Europa ainda está às voltas com o pesadelo do "Brexit" e as eleições americanas são apenas em Novembro. Mas a transformação de Donald Trump de “brincadeira” a candidato dos republicanos começa a pô-la nervosa. Os europeus sabem o que é esta espécie de populismo de milionários que Silvio Berlusconi representou, ainda que numa versão mais moderada. Mas o primeiro-ministro italiano não era o chefe da única superpotência mundial, nem tinha à sua disposição o maior Exército do mundo (de muito longe), nem a maior economia, nem a responsabilidade pela segurança internacional. O simples efeito de total “imprevisibilidade” que Trump traz para a política externa dos Estados Unidos chega para causar ansiedade nos quatro cantos do mundo. Trump já tem a nomeação garantida e já conseguiu o que pareceria impossível aos olhos de um europeu: a progressiva rendição do establishment republicano, não apenas do Tea-Party, que fez o favor de lhe escancarar as portas, mas também de moderados como John McCain. Hillary, a única que pode travar a caminhada do candidato republicano para a Casa Branca, continua a ver-se perseguida por Bernie Sanders, o outro candidato-surpresa desta campanha, sublinhando o seu carácter inédito.

2. Em matéria de política externa, Trump já disse tudo aquilo que os europeus não querem ouvir. Que a NATO está “obsoleta” e custa demasiado dinheiro aos EUA. Que o Japão deve pagar mais à América pela sua segurança (e a Coreia do Sul também), ou então que trate de construir a bomba nuclear. A mesma receita pode ser conveniente para a Arábia Saudita, de forma a reequilibrar a sua relação de forças com o Irão, cujo acordo nuclear negociado por Obama promete rever. O fundamento da sua política externa é simples: chega e basta aos americanos aumentar (ainda mais) o seu poderio militar para manter o mundo em respeito. A China é outra das suas obsessões. Ameaça aumentar as tarifas de entrada das importações chinesas e invocar a cláusula da “manipulação da moeda” do FMI. Aliás, quer rever todos os acordos de comércio livre negociados nos últimos anos, desde a NAFTA (Canadá e México) até à Parceria Trans-Pacífica e à Parceria Transatlântica (ainda em negociação). Promete deportar os 11 milhões de ilegais a trabalhar nos Estados Unidos, a começar pelos mexicanos e impedir a entrada de muçulmanos. O problema é que é isto que, pelos vistos, cada vez mais americanos querem ouvir. Resume o site da Vox que a presidência de Trump “significaria uma mudança do lugar da América no mundo”. “Não é preciso pensar muito para perceber que põe em causa a equação de segurança fundamental para alguns dos seus aliados mais próximos”.

3. Na Europa, o alarme já está em muitas manchetes da imprensa. “O impensável aconteceu”, escrevia há dias o Die Welt. No Telegraph, um antigo embaixador britânico em Washington avisa que a Europa “tem de o levar a sério.” A questão é saber se não é já tarde demais. Na Europa como nos Estados Unidos, ninguém conseguiu antecipar a força dos sentimentos anti-sistema. Do lado de cá do Atlântico já são raros os países que não tenham direito ao seu “minitrump”. As razões são genericamente as mesmas. Depois da queda de Wall Street e da Grande Recessão, os responsáveis políticos europeus e americanos acreditaram que poderiam regressar ao business as usual com algumas alterações destinadas a controlar melhor o funcionamento dos mercados financeiros. Não viram os sinais de que se tratava de algo muito mais profundo, traduzindo uma rejeição da globalização e dos imigrantes por parte de muita gente que tinha medo de perder os seus empregos, de ver o seu nível de vida ameaçado e o futuro dos seus filhos posto em causa. Walter Russell Mead, que tem escrito muito sobre a história da política externa americana desde a fundação, escreve na American Interest: “Trump atrai todos os que pensam que o establishment americano, the great and the good de ambos os partidos, já esgotaram ideias que não funcionam e valores que não nos podem salvar. Ele é o candidato do Control-Alt-Delete”.

Na Alemanha como na França, na Áustria, nos Nórdicos, na Itália ou na Holanda, o mesmo movimento de rejeição é em tudo similar aos norte-americanos, mesmo que se possa exprimir de forma diferente. Aliás, as grandes mudanças políticas registadas nas últimas décadas atravessaram rapidamente o Atlântico. Ronald Reagan e Margaret Thatcher, na revolução liberal conservadora; os Novos Democratas de Bill Clinton e a Terceira Via de Blair; Bernie Sanders e Jeremy Corbyn, ou o Podemos, só que desta vez em sentido contrário. Os EUA nunca tiveram uma grande tradição socialista. Tom Wright, da Brookings Institution, tenta fazer a história destes momentos de ruptura, argumentando que há precedentes. “Vários estudos mostram que costuma haver uma resposta política deste género durante os primeiros dez anos depois de um choque económico”. Não chega para tranquilizar ninguém, sobretudo quando os Estados Unidos e a Europa têm pela frente o desafio de integrar a emergência de novas grandes potências na ordem internacional.

Num discurso sobre a política externa americana, Hillary Clinton disse aquilo que parece óbvio para muita gente: que era um risco entregar a Donald Trump o botão nuclear. Pode ser um exagero mas, de algum modo, simboliza as ondas de choque que a sua eventual eleição provocaria no mundo inteiro. “Começar uma guerra comercial ou desfazer alianças estratégicas pode ser muito destrutivo”, diz ainda Wright.

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