Um saxofone impróprio para cardíacos
Kamasi Washington e o seu octeto provocaram um arrastão na Casa da Música. Houve ritmos vibrantes e fusões improváveis, mas houve principalmente um saxofonista condenado a virar as próximas páginas do jazz. Um concerto ruidoso e brilhante.
Após uma pequena e misteriosa introdução, Kamasi Washington passa à apresentação do tema de Change of the guard e subitamente um furacão toma de assalto a Sala Suggia da Casa da Música. Quando Kamasi se entrega ao saxofone e se deixa levar pela emoção e pelo improviso, a sala treme e a expectativa cumpre-se: o jazz está vivo e recomenda-se. O jazz da fluência narrativa de Sonny Rollins, dos devaneios em cascatas de sons de John Coltrane, da espiritualidade de Pharoah Sanders, do delírio conceptual de Sun Ra existem no sopro ora frenético, ora subtil de Washington. Mas dizer que é o passado que determina a música do saxofonista californiano de 36 anos é um erro clamoroso: por ali andam também o funk de George Clinton, o jazz-rock e, principalmente, muita da cultura urbana do hip-hop. São estes cruzamentos que tornam a música de Kamasi Washington tão urgente e tão contemporânea. O jazz tem na sua arte uma irremediável prova de vida.
Como seria de esperar, a Casa da Música encheu-se de melómanos de diferentes proveniências. O público do jazz mais puro e duro estava lá, os devotos de Kendrick Lamar também. Como os sôfregos pela next big thing. Nenhum se desiludiu. Desde os primeiros acordes e, principalmente, após os primeiros solos, a plateia rendeu-se em longas ovações. Kamasi e os seus pares ajudam, pela entrega, pelo evidente prazer de tocar (o concerto durou duas boas horas e no final a banda foi para o bar assinar autógrafos e falar com os fãs), pelo uso de palavras em português e pelo convite à assistência a participar em coros ou em coreografias. Os ortodoxos do jazz ficaram arrepiados com a suposta cedência ao populismo, mas também eles perceberam que a arte de Kamasi implica uma estética de rua que não cabe no formalismo da tradição.
O grande mistério que antecedia o concerto era o de saber como poderia Kamasi transpor para o palco a dimensão sinfónica que marca The Epic, a sua obra de estreia no ano passado. A solução, quando foi preciso encontrá-la, passou pelo recurso à voz de Patrice Quinn. Nem sempre funcionou, ou, pelo menos, nem sempre funcionou bem, até porque ao vivo a música do saxofonista é naturalmente mais crua, o que dispensa atmosferas sonoras como as da gravação. Mas, em contraponto, os recursos electrónicos e uma máquina rítmica dirigida por dois bateristas competentes não faltaram à convocatória e impuseram-se mais do que no registo de estúdio. Nas teclas, Brandon Coleman divergiu entre os formatos mais clássicos do piano e uma plêiade de sintetizadores que tanto serviam para solar como para criar harmonias e ritmos. No contrabaixo eléctrico (associado a pedais wah-wah e a outros recursos electrónicos), Miles Mosley foi muitas vezes um concerto dentro do concerto.
Mas foi quando Kamasi Washington se entregou ao seu tenor e derivou pelo improviso que o zénite do concerto esteve mais perto. Está fora de causa qualquer discussão sobre a sua criatividade ou ainda menos sobre a sua técnica – como os verdadeiros génios do saxofone, a forma como respira no decorrer de solos longos e intensos é notável. Mas se há algo que os torna emocionantes é a fidelidade permanente a um sentido rítmico. Por vezes, pode aproximar-se do paroxismo do free, mas a sua fluência jamais nos deixa perdidos. Há sempre uma ligação à harmonia e, principalmente, ao ritmo imposto pelas batidas dos dois bateristas. Mesmo nos picos de intensidade rítmica ou no auge da produção de decibéis, o saxofone de Kamasi Washington é que desenha as tendências, marca os compassos e estabelece a causalidade da música. Vê-lo e ouvi-lo a solar é uma experiência devastadora. Com ele, o jazz rejuvenesce.
E rejuvenesce também porque Kamasi consegue a provavelmente mais bem-sucedida operação de abertura de fronteiras a outros géneros registada nos últimos anos. Se temas como Change of the guard ou Final thought replicam de alguma forma os eixos essenciais da ortodoxia do jazz, outros, como The rhythm changes, são uma espécie de montra da aldeia global urbana de Los Angeles, com sugestões afro, batidas hip-hop e uma propensão para a dança que mexeu em permanência as pernas e as cabeças da plateia. Com uma banda competente (na qual o pai de Kamasi, Rickey, aparece a tocar flauta ou saxofone soprano), energia e um poder de comunicação para diferentes audiências, o concerto estava condenado a ser um sucesso. Nem as baladas de Patrice Quinn ou algumas passagens mais jazz-rock à maneira dos anos 1970 foram capazes de apagar esta impressão geral.
No final, Kamasi veio ao palco por duas vezes porque tinha à frente uma audiência de mais de mil pessoas que o aplaudiam de pé. A sua música, para lá da intensidade ou do talento com que aborda o saxofone, contagia e faz das fórmulas alargadas do jazz um campo onde há lugar para a nostalgia, sem que seja o passado do jazz ou da música negra a impor as regras. A sua música, o seu jazz, exige movimento, mas não perdeu a capacidade de convocar a reflexão. Com um único disco publicado e apenas uma digressão mundial no currículo, Kamasi é já hoje o mais poderoso agente do jazz do futuro. Quem toca saxofone assim merece a condenação.