Dylan sem sombras

Apenas boas versões de grandes canções americanas, sem sombras à vista: Fallen Angels

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Dylan é Dylan, a banda é irrepreensível, as canções igualmente. Mas falta pathos

Shadows in the Night, editado o ano passado, foi o álbum em que Bob Dylan, guardião do cancioneiro americano, transportou o espírito de Sinatra, e de Sinatra no seu tempo (entre os anos 1940 e 1960), para a sua voz e corpo septuagenários. Era um álbum nada menos que magnífico, transformando a dor e tragédia provocada por amores perdidos na juventude ainda sentida tão perto num negrume que nunca se cerrava em escuridão total – para o conseguir, estava lá a ironia (falamos, afinal, de Bob Dylan), estava uma terna melancolia (falamos, afinal de um septuagenário a deparar-se com os sentimentos do seu jovem eu, perdão, do jovem Sinatra).

Fallen Angels, não tendo sido gravado com Sinatra em mente, é igualmente composto por canções que Sinatra interpretou ao longo da carreira – a excepção é Skylark. Mas Fallen Angels empalidece perante o seu antecessor. Shadows in the Night estava muito próximo de álbum conceptual e ganhava-nos na forma como, canção após canção, o rosto de Sinatra se tornava cada vez mais o do Dylan que o cantava. Fallen Angels é “apenas” uma colecção de música do cancioneiro americano que, quer nos álbuns de originais, quer nos de versões, Dylan tem erguido como tocha que ilumine este estranho e conturbado mundo moderno. Quanto à interpretação musical, tem as mesmas virtudes do seu antecessor: uma banda reduzida onde sobressai a guitarra pedal steel de Donnie Herron, uma banda de elegância irresistível atravessando as canções com mestria feita descontracção (um mini combo swing, ou country, disponível num salloon texano, ou pequeno clube nova-iorquino, perto de si). Falta-lhe o tom – demasiada descontracção, diríamos.

“Fairytales can come true/It can happen to you / if you’re young at heart”, ouvimos logo a início – o trovador, na sua voz gasta mas capaz de uma delicadeza desarmante, a introduzir-nos no cenário. Depois ouviremos como a madrugada parece envolver Maybe you’ll be there e o tom lúdico de Polka dots and moondbeams. Apreciaremos o exotismo cinematográfico de On a little street in Singapore e constataremos que Dylan fez muito bem em refrear a subida de tom na última frase de All or nothing at all – essa que, mesmo no último segundo, quase minava com um desnecessário acesso de exibicionismo a versão que Sinatra gravou com a Harry James Orchestra em 1939. Passaremos pelos clássicos com Johnny Mercer, Hoagy Carmichael, Sammy Cahn ou Jimmy Van Heusen nos créditos, chegaremos à Come rain or come shine da despedida.

Foi um tempo bem passado? Certamente. Dylan é Dylan, a banda é irrepreensível, as canções igualmente. Mas falta o pathos e a capacidade transformada revelada em Shadows in the Night. Neste Fallen Angels, Dylan é “apenas” o homem que dá voz a um legado dourado. Surge perante nós como quando da sua última passagem por Portugal, em 2008. Escondido à esquerda do palco, chapéu de aba larga cobrindo-lhe o rosto, tocou discretamente um pequeno piano enquanto se sucediam as pérolas do tal cancioneiro americano – que, por acaso, tinham assinatura sua. É o que faz aqui. Mostra-nos as canções na sua voz, com a sua banda.

Em Fallen Angels os arranjos não seguem necessariamente os originais, mas não se opera qualquer transformação. São apenas boas versões de grandes canções. Sem sombras à vista.

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