O homem que está a trazer as novas gerações para o jazz
Jazz filiado na história, mas livre e militante. Há muito que uma figura do jazz não criava tanto entusiasmo, captando a atenção das novas gerações. Segunda e terça-feira, Porto e Lisboa recebem Kamasi Washington, o autor do surpreendente triplo álbum The Epic.
No final de 2015 havia um álbum que se destacava no balanço de final do ano das mais influentes publicações do planeta: To Pimp A Butterfly do rapper americano Kendrick Lamar. Já a revelação de muitas dessas listas pertencia ao triplo álbum The Epic, que também encimava a maior parte das classificações dedicadas ao jazz. Foi isso que aconteceu também aqui no Ípsilon. Entre os dois álbuns havia um nome em comum: Kamasi Washington.
São dele os arranjos e o som do saxofone no álbum de Lamar. E é ele o autor de The Epic, o triplo álbum que vem apresentar na segunda-feira à Casa da Música do Porto e na terça-feira ao Teatro Tivoli de Lisboa. Um acontecimento chegar a Portugal na altura em que se transformou num fenómeno do jazz e não só, porque o que faz está sedimentado num edifício jazzístico, mas sem fronteiras rígidas, procurando alimento no funk, soul, blues, gospel ou até na clássica.
Um novo profeta
“O reconhecimento que fui obtendo no último ano surpreendeu-me, no sentido em que nunca sabemos a quantas pessoas a nossa música poderá chegar. É sempre uma incógnita o que vai acontecer. Mas ao mesmo tempo olho para o que aconteceu como o desenlace normal de um trabalho efectuado ao longo de anos”, diz-nos Kamasi, 35 anos, a partir da sua Los Angeles natal. Nos últimos meses os galardões e elogios têm surgido de todo o lado. De repente parece que o mundo do jazz nos Estados Unidos encontrou um novo profeta, com capacidade de chegar ao grande público, mas ele prefere manter a sua postura humilde, falando pausadamente.
“Sou a mesma pessoa de sempre. Apesar de este ser o meu primeiro álbum em nome individual, não sou um novato. Sei que os corredores da fama dão e tiram em simultâneo. Fui-me preparando para chegar aqui. Fico satisfeito por ver concertos esgotados e por haver pessoas que se interessam pelo que faço, mas tudo o resto deixa-me um pouco indiferente. Tento não distrair-me muito.”
O seu álbum tem 172 minutos e foi registado com uma orquestra de 32 músicos e um coro de vinte pessoas. Naturalmente, em digressão com passagem por Portugal, onde diz nunca ter vindo, apresentará uma formação mais reduzida, um octeto com voz, dois bateristas, três sopros, baixo e teclas. “Tudo músicos que conheço há muito e que participaram na gravação do álbum e com quem tenho tido a oportunidade deste então de potenciar o que gravámos.”
O facto de ter lançado o álbum na editora Brainfeeder do conterrâneo de Los Angeles Steve Ellison (ou seja, Flying Lotus), apesar do assédio tardio da Blue Note, e de ter construído uma colaboração sólida com Kendrick Lamar, contribuiu para criar a ideia que se deve a isso o seu apelo junto de público mais transversal do que o do jazz. Ele na verdade nem pensa nisso. Não reflecte a partir de géneros. O mesmo se poderia dizer de Lotus e de Lamar. Nenhum deles tem propriamente uma casa fixa. Têm âncoras, mas nada mais. Na música – e na actividade editorial – de Lotus não existem limites, com o hip-hop mais aventureiro em conexão com o jazz, o psicadelismo ou as electrónicas, como se constata ouvindo a sua música, ou o funk cósmico de Thundercat ou o jazz do falecido Austin Peralta, tudo gente lançada por ele.
“Steve tem essa capacidade de antecipar o futuro, falando de coisas que daí a uns anos vamos ouvir falar”, diz Kamasi. Por sua vez Lamar provou no último álbum que procurar as linhas que unificam hip-hop com jazz, funk ou soul não é tarefa difícil. O que os três partilham é, para além dessa permeabilidade, uma reverência à história da música afro-americana, sendo colocada sempre em ligação com a progressiva consciência sociopolítica.
“A ligação do hip-hop, e outros géneros, com o jazz não é de agora. Não olho para o jazz como fronteira, mas como hipótese sincrética, qualquer coisa que em vez de se fechar sobre si própria, pode provocar novos desafios através da transcendência. Mas isso é a história da música”, diz ele. “Não tenho dúvida que existem muitos outros músicos – como Kendrick ou Steve – que concordarão comigo, independentemente onde se situam. Para lá do que cada um faz acreditamos na música como qualquer coisa de espiritual, um meio pelo qual posso expressar quem sou de forma sensitiva, e isso não é exclusivo do jazz, do hip-hop, do funk ou do que seja.”
A inquietude expressa na música deve-a também à mãe, flautista ocasional, reconvertida em professora de ciências, que sempre o apoio nas suas decisões, e ao pai, reputado saxofonista de sessão que muitas vezes o acompanha em palco. Foi a partir dos subúrbios de Inglewood, na Califórnia, que foi despertando para a música bem cedo. Aos 3 anos tocava bateria. Aos 9 passou para o clarinete e começou a ouvir hip-hop. O jazz surgiu-lhe aos 11 anos através da música de Art Blakey e dois anos depois anunciou à família que iria ser músico.
Hoje quando olha para trás reconhece que a música lhe abriu horizontes num bairro onde o vulgar era pertencer-se a um gangue. “A partir de determinada altura, através do que lia, fui percebendo que para muitos afro-americanos a música era uma das únicas formas de afirmação. Acabava por ser uma das maneiras de saírem da sombra para onde eram sempre empurrados”, afirma ele, enunciando que aí despertou não só o desejo de sair da obscuridade, como de transportar alguma luz a outros através da música.
Na fase de aprendizagem John Coltrane tornou-se na sua obsessão e um ano depois de ter começado a estudar na Universidade, em 1999, foi convidado para ir em digressão com o rapper Snoop Dogg. O dinheiro, a possibilidade de viajar pelo mundo para alguém que apenas conhecia duas grandes cidades americanas, e o facto de ser admirador de Snopp levaram-no a aceitar, algo que viria a repetir com outros nomes ao longo dos anos como Lauryn Hill, Chaka Khan, Nas, Raphael Saadiq ou Erykah Badu.
No início dos anos 2000, apadrinhado pelo baterista Bill Higgins, viria a formar na companhia do pianista Cameron Graves e dos irmãos Ronald Bruner Jr (bateria) e Stephen Bruner, ou seja o conhecido Thundercat (baixo), o colectivo Young Jazz Giants que gravariam o seu único álbum em 2004, desdobrando-se a partir daí por outros agrupamentos como Next Step e West Coast Get Down.
O encontro com Flying Lotus
Até que, em 2008, cruza os seus caminhos com os de Flying Lotus (que para mais é sobrinho-neto de Alice Coltrane, que foi mulher e colaboradora de John Coltrane), depois de dois anos a testar ideias com o seu colectivo de músicos, sendo desafiado por ele a gravar um álbum. Resolveu investir tudo o que tinha e durante um mês, em Dezembro de 2011, fechou-se em estúdio com dez músicos para trabalharem em oito projectos diferentes.
“Não havia dinheiro para ninguém, mas todos se comprometeram a participar nos álbuns uns dos outros”, lembra ele, proclamando que o jazz é uma música colectiva, onde existe espaço para cada um poder expressar a sua individualidade, mas também tem de existir generosidade na forma como se está entre os pares. No final tinham 192 canções completadas, com 45 a pertencerem a Kamasi, das quais viria a escolher 17, e às quais viria a adicionar mais tarde coros e cordas. Queria dessa forma evocar Symphony of psalms de Igor Stravinsky, embora o resultado das orquestrações também nos transportem para a soul de Marvin Gaye.
Há um ano, a partir da edição do álbum, finalmente Kamasi começou a ocupar o centro do palco. Fê-lo com simplicidade mas também com confiança, expondo uma música grandiosa, evocativa do passado mas não ficando prisioneira dele, combinando jazz, funk, balanço físico, sentimento e ferocidade, provocando comparações com grandes figuras do jazz como Coltrane, Pharoah Sanders, Sun Ra, Albert Ayler, Charlie Parker, Wayne Shorter ou Miles Davis, ao mesmo tempo que o próprio expunha sedução por muitos nomes que extravasavam essa órbita, de Fela Kuti a Marvin Gaye, dos Radiohead a Stravinsky.
Acima de tudo é um álbum que respira orgulho afro-americano e um sentido de contínuo histórico. Isso é visível na capa afro-futurista, na sonoridade – do jazz ao gospel, do blues ao funk – e na forma como o imaginário dos anos 1970 acaba por ser convocado. Mas ao mesmo tempo consegue afirmar o seu próprio som, algo que ele remete para o facto de ter crescido em Los Angeles.
“Ao contrário de Nova Iorque ou Nova Orleães não existe propriamente uma cena de jazz em Los Angeles, toca-se apenas pelo prazer e não tanto pela intencionalidade de uma carreira. Há algum despreendimento o que até certo ponto é bom porque tanto se pode abordar o jazz de uma forma mais livre como abordar ideias rítmicas mais chegadas ao funk. Não temos que nos conformar a uma imagem, simplesmente porque estamos mais isolados. De qualquer forma jazz é apenas uma palavra. A música que tocamos vai para além dessa palavra que acaba por ter um valor muito diferenciado de pessoa para pessoa.”
O seu álbum é uma obra que mais parece uma ópera jazz, qualquer coisa que sonicamente parece perdida no espaço, para ser reconstruida a cada nova audição, contendo proclamações de espiritualidade, na esteira dos músicos humanistas afro-americanos, e exigindo um papel político que não se esgota nas menções a Malcolm X.
“É diferente para alguém como eu, que faz música predominantemente instrumental, comunicar ideias políticas. Mas essa comunicação não se esgota nas palavras. O meu saxofone não fala, mas nem sempre a comunicação mais profunda, ou mesmo a mais eficaz, acontece através das palavras. Nesse sentido em tudo o que faço acaba por existir um propósito político. Quero interagir com o mundo, comunicando o que sinto, o que experiencio, mesmo tendo consciência que as palavras são mais directas. Gero um tipo de comunicação diferente mas não é por isso que deixo de expressar as minhas ideias. Estamos a viver um momento estranho no mundo, e nos Estados Unidos em particular, com estas eleições presidenciais tão polarizadas. E claro que é assustador pensar em alguém como Donald Trump para presidente.”
Do álbum de Kendrick Lamar, onde viria a ter um papel relevante, só tem elogios, argumentado que o seu sucesso global pode constituir a prova que, apesar de tudo, existe hoje mais disponibilidade para consumir música que fuja aos padrões mais simplistas. “Ele alcançou um patamar único podendo arriscar coisas novas sabendo que tem muita gente que espera isso exactamente dele, o que acaba por ser o sonho de qualquer artista. O álbum dele instituiu um antes e um depois, mostrando que existe público capaz de apreciar obras complexas que acabam por alterar a nossa percepção e abrem novos horizontes.”
A sua perspectiva sobre a música é ampla. Quando lhe perguntamos se parte para a feitura dos temas com alguma ideia particular em mente, diz de imediato que isso raramente acontece. “Parto de esboços, de fantasias, de pequenos apontamentos a que depois vamos tentando atribuir sentido, mas não existe propriamente um modelo.”
O que existe é uma corrente de melodias, de ambientes e de ritmos que se sustêm em rede, contendo elementos jazzísticos, que acabam por formar tanto um mapa sonoro quanto mental. Por vezes surge a voz soul de Patrice Quinn, por entre climas cósmicos e deambulações do saxofone, formando um ecossistema próprio, afirmando uma sonoridade com tanto de familiar como de aventureiro, o que tem trazido novas gerações ao jazz.
Para isso muito têm contribuído os seus espectáculos exuberantes ao vivo, com momentos de rigoroso virtuosismo secundados por alturas de improvisação, num compromisso entre a expressão individual – com destaque para o saxofone – e o sentir colectivo de músicos que sabem ouvir-se, escutando nesse movimento o colectivo.
À conta disso, nos últimos tempos, deixaram de actuar apenas um pequenos clubes fumarentos ou em festivais de jazz, para também subirem a palcos de grandes eventos de verão como Coachella, Bonnaroo ou Pitchfork. “Na verdade não é nada de novo”, lança ele, lembrando que está habituado a actuar para grandes multidões desde as digressões com Snopp ou Lamar. Já em relação ao facto de poder estar a conquistar dessa forma um público mais jovem que agora desperta para o jazz, como a imprensa não tem parado de declarar, é mais comedido.
“É verdade que por vezes vêm ter comigo pessoas que dizem ter começado a gostar de jazz ouvindo-me, mas isso é porque tinham uma ideia deturpada do jazz”, diz ele, argumentando que sente satisfação se de alguma forma a sua música acaba por abrir portas a novos públicos, embora rapidamente regresse ao seu papel modesto, recusando quaisquer responsabilidades acrescidas.
“Quero é continuar a tocar e a gravar. No fim de contas quero continuar a fazer o mesmo de sempre, ensaiando algumas horas por dia, tocando por vezes à noite e, no fim, regressar calmamente a casa com o saxofone.”