Quem protege os animais que não são domésticos?

“Vão deixar-se impunes actos de violência contra animais na posse de humanos que não sejam de companhia”, diz parecer da Ordem

Foto
skeeze/Pixabay

A Ordem dos Advogados aponta várias fragilidades aos projectos de lei destinados a aumentar a protecção dos animais em discussão na Assembleia da República. No que às propostas dos socialistas diz respeito, os advogados falam não apenas numa oportunidade perdida como, nalguns aspectos, em retrocessos legislativos – na linha, de resto, de críticas já feitas à competência legislativa dos deputados quer pelo Conselho Superior da Magistratura quer pelo Conselho Superior do Ministério Público.

Em causa estão alterações ao Código Civil para mudar o estatuto jurídico dos animais, por forma a que deixem, por fim, de ser vistos como coisas pela justiça, para alcançarem um estatuto jurídico intermédio entre os objectos e as pessoas. Mas também várias correcções que os parlamentares querem fazer ao Código Penal para sanar as múltiplas deficiências da lei que, há perto de dois anos, criminalizou os maus tratos e o abandono — e que, segundo a Ordem, conduziram ao arquivamento inapelável de muitos processos.

A principal objecção relaciona-se com o facto de o grupo parlamentar socialista se recusar a alargar a protecção contra maus tratos a outros animais que não os de companhia. “A informação científica hoje disponível não sustenta que um gato ou um cão sejam mais sencientes e tenham maior capacidade para experimentar dor e sofrimento do que um porco, um cavalo, um bovino ou um corvo”, assinalam as advogadas encarregues de redigir o parecer, Alexandra Reis Moreira e Sónia Cristóvão.

“Aliás, as evidências científicas apontam que, até em matéria de faculdades cognitivas, as capacidades de um cão ou um gato têm sido suplantadas por porcos em experiências que testam o índice de inteligência, situando-se ao nível dos resultados dos chimpanzés”, prosseguem.

“Perder, mais uma vez, a oportunidade de conformar a lei penal, na parte respeitante à protecção dos animais, com a Constituição (…) é insistir no erro e eternizar parte dos problemas” criados pela legislação em vigor.

As autoras do parecer criticam também o projecto do PAN – Partido Pessoas, Animais, Natureza — por ser maximalista, alargando a protecção até aos invertebrados: “Animais como as moscas ou vermes receberiam tutela penal contra maus tratos físicos (…), o que iria detonar generalizado repúdio social. A sociedade não está preparada para uma tal mudança de paradigma civilizacional”.

Repetição de erros

A Ordem dos Advogados considera, porém, lamentável que nenhum dos dois projectos contemple os maus tratos psicológicos nem os danos à saúde, “repetindo o erro” da legislação em vigor. O stress intenso e as deficientes condições de alojamento são responsáveis por patologias graves e comportamentos anómalos como a automutilação, recordam.

A punição do recurso a animais para práticas sexuais – que já é crime em países como a Espanha, França, Alemanha, Reino Unido, Suécia, Holanda e Noruega – também não está prevista.

Aliadas às alterações do Código Civil destinadas a alterar o estatuto jurídico dos bichos também preconizadas pelos socialistas, as alterações previstas para o Código Penal podem ter o efeito perverso de desproteger todos os animais que não sejam domésticos, o que representaria, dizem as duas juristas, um retrocesso face ao actual regime: “Vão deixar-se impunes actos de violência contra animais na posse de humanos que não sejam de companhia. A morte causada dolosamente [com intenção] a animais utilizados na actividade pecuária deixaria sequer de constituir crime de dano, ficando os autores dessas atrocidades impunes”.

O projecto do PS estipula ainda uma pena entre seis meses a dois anos, substituível por multa, para quem matar um animal de companhia – punição que a Ordem entende ser excessivamente branda, tendo em conta que a moldura penal pelo crime de mero dano vai até aos três anos.

Analisada de forma global, a proposta do partido do Governo “fica muito aquém das expectativas sociais e das necessidades de censura e violência gratuita”. Até porque cada vez mais a ciência tem vindo a associar os maus tratos de animais à psicopatia e à sociopatia.

E até a alteração do estatuto jurídico dos animais não escapa às críticas das duas juristas, que explicam que o projecto do PS nesta matéria se inspirou na lei francesa — que, apesar de recebida de forma entusiástica quando foi aprovada, no início do ano passado, “não teve, afinal, qualquer utilidade prática”. A solução passará por criar legislação especial para regular a matéria, uma possibilidade que o grupo parlamentar socialista de resto também preconiza.

Não é possível proibir já o abate, sustentam veterinários

No Parlamento está também em discussão um projecto apresentado pelo PAN a proibir o abate indiscriminado de animais nos canis municipais. Para a Ordem dos Veterinários é cedo demais para isso, uma vez que, quando existem, os centros de recolha das autarquias têm uma capacidade limitada. “Não há. por enquanto, condições para proibir o abate”, reconhece uma dirigente da Ordem, Sónia Miranda. O projecto prevê que os animais vadios sejam devolvidos à rua. Para os veterinários, o facto de os cães se podem organizar em matilhas é um dos entraves a tal solução.

Sugerir correcção
Comentar