Trinta e sete falas para uma banda sonora do presente
A 39.ª edição do FITEI abre sábado no Rivoli com Suite n°2, do colectivo Encyclopédie de la Parole, sequência de 37 falas que compõem um retrato sonoro do mundo contemporâneo.
Suite n°2, segundo andamento de uma tetralogia teatral concebida pelo encenador francês Joris Lacoste no âmbito do projecto Encyclopédie de la Parole, é uma tentativa de mostrar em palco, a partir de palavras que alguém efectivamente disse em determinada circunstância, as muitas maneiras de que nos servimos para dizer o que dizemos, e como esses modos de dizer participam do sentido do que é dito.
Mas isto é dizer apenas uma parte, já que Lacoste, depois de uma Suite n°1 de natureza um tanto preambular, em que se centrou numa espécie de bê-a-bá do que é falar, trabalhando com falas inaugurais, como o balbuciar de um bebé ou as primeiras tentativas de quem aprende uma língua estrangeira, quis desta vez, por assim dizer, passar à acção, escolhendo palavras que criam realidades, que têm consequências, que mudam o mundo, quer em grande escala, como o discurso de Bush anunciando a guerra do Iraque, quer num plano mais individual, como o de um jovem homossexual americano que enfrenta uma espécie de conselho de guerra familiar, que alguém, talvez ele próprio, gravou com o recurso a um telemóvel.
Porque tudo o que os actores dizem nesta peça foi dito antes por alguém. E os cinco intérpretes – dois franceses (Olivier Normand e Emmanuelle Lafon, a única que integra, com Lacoste, a equipa nuclear do projecto Encyclopédie de la Parole), o russo Vladimir Kudryavtsev, a croata Barbara Matijevic e o português Nuno Lucas – não apenas repetem as exactas palavras dos discursos originais, e nas mesmas línguas, mas tentam tanto quanto possível dizê-las da mesma forma: em surdina ou gritadas, frias e monocórdicas ou repassadas de emoção. E dizê-las com a mesma cadência, as mesmas entoações e pausas, o mesmo sotaque.
Se pensarmos que o espectáculo inclui 37 falas em 17 línguas diferentes, do português ao japonês, que às vezes há três ou quatro a ser ditas ao mesmo tempo, entrando e saindo de cena com a precisão de uma partitura musical, que algumas destas cenas são interpretadas a solo e outras são convertidas em peças corais, e que a sequência inclui coisas tão diversas como o discurso de um ministro das Finanças cujo nome não pronunciaremos, a conversa de uma mulher com uma avestruz num jardim zoológico, um curso de auto-ajuda no You Tube, ou o serviço de reclamações de uma empresa de telecomunicações mexicana, imagine-se o que não terá sido ensaiar esta Suite n°2.
Além de um consultor musical com quem Joris Lacoste trabalha regularmente, Pierre-Yves Macé, a equipa incluiu professores de dicção nas várias línguas utilizadas. Para enfrentar esta babel linguística, os espectadores terão direito a legendas em inglês, que aliás integram de pleno direito o espectáculo e funcionam elas próprias como um dispositivo cenográfico, crescendo, minguando, piscando, desaparecendo.
Como o próprio encenador resumiu ao Ípsilon, esta espécie de colagem sonora de que se faz Suite n°2 “envolve três níveis”: a “organização musical” dos sons, as “situações” a que as falas aludem, e finalmente “as palavras, no detalhe do que se diz”.
Talvez se perceba melhor com um exemplo. Há um momento em que entra em cena o discurso do dito ministro das Finanças cujo nome não pronunciaremos, que durante quase meia-hora vai debitando, na sua doce voz inexpressiva, ajustamentos, austeridades e sacrifícios. Sobre este mantra verbal, vão-se harmonizando outros sons, sejam os produzidos pela enérgica orientadora de um curso de ginástica da TV croata gritando as suas instruções, sejam os de um homem detido na Califórnia que garante não ter feito nada e pergunta repetidamente, em voz cada vez mais descontrolada, por que é que lhe estão a apontar uma arma, sejam ainda os da mulher que diz a uma avestruz no jardim zoológico: “Já percebi, és um patifezinho, não és? És um ladrãozeco”.
Se o discurso do governante “funciona como uma linha de baixo”, em sentido musical, observa Lacoste, a aula de ginástica “é como uma bateria” e o discurso do homem detido “é o canto, o Lied”.
Mas ao mesmo tempo que o espectador admira o virtuosismo e precisão deste tratamento musical da palavra falada – uma dimensão assumida desde logo na escolha da palavra “suite”, mas também na cenografia e no vestuário dos actores, que parecem concebidos para evocar um quinteto de música de câmara –, é inevitável que outras partes do seu cérebro se ocupem com leituras mais políticas do que está a ver e ouvir, identificando conexões, ressonâncias, contrastes, talvez nem sempre deliberados.
Joris Lacoste diz ter procurado nesta Suite n°2 – que seguirá do FITEI para o Alkantara Festival (com apresentações no Maria Matos Teatro Municipal a 31 de Maio e 1 de Junho) –, um ponto de equilíbrio: “Interessou-me trabalhar a questão da forma da palavra dita, mas também os seus conteúdos políticos”, diz o encenador, chamando a atenção para a simetria entre o tom calmo, mecânico, quase indiferente, do ministro que anuncia violentos sacrifícios, e a violência com que a treinadora croata grita coisas cujo único efeito prático será fazer alguém mexer uma perna ou braço.
Outra distinção que interessa a Lacoste é entre aquilo a que chama “palavras verdadeiras, no sentido de que as pessoas têm uma genuína necessidade de as dizer”, e os discursos automatizados, postiços. E se a emocionada intervenção de um aluno liceal de 15 anos durante um “meeting” estudantil em Londres – “Já não somos a geração pós-ideológica, que não quer saber, que se encosta para trás e aceita o que lhe derem, somos a geração que contra-ataca!” – é um dos exemplos óbvios destas “palavras verdadeiras”, como o é a outro nível o desabafo emotivo de uma concorrente de um Big Brother americano, há casos, admite o encenador, em que “não é possível saber”.
Num dos mais notáveis momentos do espectáculo, a croata Barbara Matijevic reproduz, com todas as nuances de emoção, com todos os gaguejos, faltas de fôlego e soluços reprimidos, um extenso discurso de agradecimento de um Óscar, tão excessivo e patético que se torna comovente. Não vamos tirar ao espectador o prazer de identificar a actriz que agradeceu assim a estatueta dourada, mas a questão que Lacoste coloca é esta: “É uma mulher verdadeiramente comovida por ter recebido um Óscar ou é uma actriz, uma grande profissional, a dizer um discurso ensaiado ao milímetro? Não consigo ter a certeza”.
O facto de o encenador ter escolhido falas relativas a situações geralmente muito recentes, ainda que algumas possam ter dez ou 15 anos, torna este espectáculo uma espécie de banda sonora do mundo contemporâneo, ou pelo menos uma das melodias que se pode isolar na dissonante música do presente.
E se o espectáculo vale por si e não requer nenhuma informação prévia, sendo mesmo bastante impressionante o modo como a peça, prescindindo de qualquer enredo em sentido convencional, consegue tocar todas as teclas, da tragédia à comédia, e surpreender constantemente o espectador, vale ainda assim a pena saber um pouco mais sobre o projecto geral em que estas “suites” – o workshop que Lacoste deu no Porto no início da semana foi já dedicado à preparação da terceira – se enquadram.
Iniciado em 2007, o projecto Encyclopédie de la Parole, que hoje é também um site na Internet, reúne uma equipa de pessoas com competências muito distintas – gente do teatro, poetas, linguistas, etnólogos, músicos, artistas visuais –, mas que partilham um mesmo interesse pela palavra falada. Um dos objectivos é criar um arquivo digital de registos sonoros, de recitais de poesia a relatos desportivos, de discursos políticos a mensagens de voz deixadas em telemóveis, que depois poderão ser utilizados para vários fins.
É a este fundo que Lacoste vai buscar os registos que servem de base às suas “suites”, e a outros espectáculos anteriores, como Parlement, de 2009, no qual Emmanuelle Lafon, sozinha em palco, dá corpo a dezenas de vozes. Seguiu-se Suite n°1 (2013), com 22 pessoas em palco a actuar em uníssono: onze actores profissionais e outros tantos amadores. E depois desta Suite n°2, que aposta na polifonia e na poliglotia, vem aí a Suite n°3, na qual Joris Lacoste irá, diz, “trabalhar com cantores”.