Uma terra sem factos

Há quem insista que “facto” passou a ser apenas “fato” — apesar de todos os factos em contrário. Portugal é, indubitavelmente, um país onde há muitas maneiras de matar factos.


Uma delas é por cisão. Exemplo: a Comissão Europeia emite um relatório com previsões económicas e um documento com recomendações específicas a países da UE. Chegados ambos às estações de televisão e às direções dos partidos, começa o processo de separação das recomendações neles constantes. No que diz respeito àquelas em que se apoia a alteração das leis da insolvência, o combate às desigualdades ou o investimento público, basta simplesmente não falar nelas. O cidadão poderá ouvir horas de comentário sem saber que tais coisas se encontram nos documentos da Comissão.

Caso haja a recomendação de uma meta para o défice, porém, a trajetória é muito diferente. Começa por uma mudança de nome: passa a ser tratada como “exigência”. A seguir, faz-se um cálculo rápido que transforma umas décimas do PIB em milhões de euros de suposta austeridade. Título: “Comissão exige centenas de milhões de euros em nova austeridade”. Em vão leremos o documento à procura de tal exigência. Mas como dá jeito a muita gente, de muitos lados, que não haja um governo de esquerda compatível com a União Europeia, é inevitável que o facto falso passe a existir.

Outra forma de matar factos é por implosão. Num país viciado em hipérbole, não falha. Ontem alguém perguntou a Jeroen Dijssebloem, à entrada do Eurogrupo, se era possível que Portugal fosse multado daqui a um mês. Ele respondeu: “possível é, porque está nas regras, e porque foi considerado haver motivos sérios para essa análise”. Nada que não soubéssemos, mas bastou para que nascessem os títulos: “sanções são possíveis”, “motivos sérios para multar Portugal”, etc. E lá teremos mais umas horas de adrenalina em cima de nada.

Mas a forma mais fácil de matar factos, e a preferida em Portugal, é simplesmente a confusão.

Aí não há melhor exemplo do que o caso que se tenta criar à volta dos contratos de associação com os colégios privados. Sempre foi legalmente claro que estes contratos só tinham razão de existir quando houvesse carências da rede de estabelecimentos públicos. A mera constatação de que há quem vá cumprir a lei lançou a direita num frenesi. Primeiro disse que se tratava de um ataque à liberdade de escolha, antes de dar meia-volta ao entender que nesse caso teria sido o ministério anterior a perverter uma lei que para tal não servia. Depois alegou que a medida teria sido imposta pelos sindicatos, culminando numa fotomontagem da JSD que mostra Mário Nogueira como Estaline (meninos, uma dica: coisa de estalinista é fazer fotomontagens).

E agora a direita vê-se a apoiar colégios privados que ameaçam fechar turmas em contratos que assinaram ou aceitar inscrições para contratos que não têm. A confusão instalada não se destina só a ocultar o facto de que a lei é clara — mas a disfarçar a realidade de que a direita anda a defender uma pequena minoria dos colégios privados que não aceita outro futuro se não continuar a receber milhões do estado.

Numa terra sem factos, a ideia é que ninguém repare na hipocrisia nem na chantagem.

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