Ozon, o manipulador indiscreto
Permanecemos frios na contemplação do mecanismo, sem um real envolvimento. Hitchcockiano, Ozon nunca será Hitchcock, nem será, sequer, Chabrol.
Ozon filma muito, e deve ser o cineasta francês mais workaholic da actualidade, mas raramente filma em “continuidade”: cada filme é um compartimento estanque, que pode funcionar melhor ou pior mas é sempre alguma coisa que nasce e morre ali. Não espanta por isso que seja um cineasta irregular, e que nunca saiba muito bem o que esperar de cada novo filme. O que é mais feitio do que defeito. Menos agradável é a sensação de que todos os seus filmes vivem de alguma espécie de truque, de gimmick, e que esse truque é, se não a única razão para o filme existir, o elemento em torno do qual – e do respectivo e calculado efeito – tudo se constrói. Hitchcock era assim, em versão superlativa; Ozon, a quem não é a primeira vez que chamamos hitchcockiano (mais como defeito do que como feitio, neste caso), está longe dos superlativos – mas neste caso, a começar pela matriz literária (um conto da escritora inglesa Ruth Rendell) e acabar nas citações expressas ou quase expressas (Psico, por exemplo) que Ozon inclui, a referência faz ainda mais sentido.
O truque, neste caso, é o segredo da personagem travesti de Romain Duris, tendência “libertada” pela morte da mulher, e que se transforma no ambíguo objecto de desejo da melhor amiga da defunta, interpretada por Anaïs Demoustier (a melhor amiga, não a defunta, por cujo rosto sem vida o filme começa). A titilação é garantida, os temas da “perturbação da identidade sexual”, do “vampirismo”, da “transferência de personalidades”, dos fantasmas eróticos, vão saltando todos à vista, como se Ozon pensasse em Hitchcock, em Bergman, em Polanski, em Buñuel, tudo ao mesmo tempo. Mas se não se lhe nega uma enorme habilidade – a habilidade manipuladora e calculista de quase sempre, com poucas excepções – é difícil ver em Uma Nova Amiga mais do que o exercício semi-genuíno semi-oportunista de um cineasta exímio a emular modelos e referências mas incapaz de lhes insuflar uma aragem que as transcenda ou, se isso fosse pedir muito, meramente as encaminhe para um território mais pessoal e mais imprevisível. “Uma Nova Amiga” é um filme de “máquina”; bem oleada, certamente, mas sobretudo interessada em estar sempre um passo à frente do espectador, agarrá-lo a partir de uma expectativa laboriosamente gerada mas sem cuidar de apagar (como Hitchcock fazia) as marcas, o rasto, da geração dessa expectativa. Vê-se, sente-se a manipulação, mantemo-nos sobre controlo, nunca nos esquecemos de que isto “é só um filme”. Permanecemos frios na contemplação do mecanismo, sem um real envolvimento. Hitchcockiano, Ozon nunca será Hitchcock, nem será, sequer, Chabrol.