Então está bem
A Maria João, com quem casei em 1997, nasceu em 1968. Ela é tão mais nova do que eu, nascido em 1955, que eu gosto mais dos discos que saíram em 1966 - ainda ela estava, sem ter a mínima noção, a dois anos de nascer - do que dos de 1968.
Este Verão atingirei 61 anos. Ainda estou a tentar habituar-me à estranheza de deixar de ter saudades do passado, pela simples razão de me ter esquecido do que me aconteceu.
Já comecei a convencer-me, com a necessária estupidez, que tive sorte e que o vazio oco e calado que agora ocupa a parte de mim que se lembrava de felicidades anteriores (incluindo, sobretudo, a própria infância) constitui um acto de salvação. Não consigo lembrar-me. Isto é: a minha memória, ao não conseguir lembrar-se, poupou-me.
Esquecer é uma poupança. Ter lido Borges antes de se ter a idade que ele teve quando escreveu o que lemos é uma predestinação. Obriga-nos a pensar que perdemos, por pensar, mais do que ele.
Até anteontem a Maria João e eu brincávamos ao "Quem tem razão?" Era sempre ela ou eu. Anteontem passou a ser nem ela nem eu. E a novidade mais deprimente das nossas vidas: a verdade é um facto que ambos podemos desconhecer, achando que um de nós tem uma memória infalível. Mentira.
Bifurcámos acerca do actor principal de uma série televisiva que, em nossa defesa, pouca graça tinha: A Touch of Cloth. A Maria João achava que era James Nesbitt. Eu achava que era Aidan Gillen.
Não era um nem outro: era John Hannah. É doloroso.