Cavaco Silva, as FP-25 e um rapto que não o foi

Livro conta a história recente do país democrático através do seu jornalismo anónimo, o das agências noticiosas — desde a ANOP e NP até à Lusa. É um relato sobre jornalistas, governantes, “profecias sombrias”. E de uma operação tão confusa quanto os tempos do pós-revolução.

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O dia 14 de Maio de 1980 não prometia nada de extraordinário. Noticiava-se que o estuário do Tejo poderia vir a ser um dos portos de abrigo de um porta-aviões dos EUA; o papel das fábricas de celulose nórdicas não chegava aos jornais portugueses por causa das greves na Suécia e na Finlândia; as greves paralisavam também os portos nacionais; e as FP-25 (Forças Populares 25 de Abril) estavam no pico da actividade, entre mortes, prisões e assaltos.

Mas faltava ainda saber-se que Cavaco Silva tinha sido alvo de uma alegada tentativa de rapto e quem ganharia, nesse noite, a final da Taça das Taças.

Portugal era então governado pela AD, a aliança que juntara o centro-direita, Ramalho Eanes era Presidente da República e Cavaco Silva ministro das Finanças. O que aconteceu mesmo a Cavaco? E quem ganhou o jogo?

Wilton Fonseca e Mário de Carvalho, jornalistas que trabalharam nas agências noticiosas nacionais e que lançaram o livro Heróis Anónimos — Jornalismo de Agência, foram atrás da resposta à primeira questão. A consulta, ao longo de anos, de milhares de documentos e notícias originais, que contam a história do tempo democrático em que o país teve duas agências noticiosas, entre 1975 e 1986 (ANOP — Agência Noticiosa Portuguesa e mais tarde NP — Notícias de Portugal), levou-os até esse dia, a partir da que é ainda hoje a primeira grande linha de produção de notícias e a menos visível para o público, a agência.

“Rapto fracasso — ministro”, era o título telegráfico (como é sempre em agência) da primeira notícia da ANOP, emitida às 21h. Na época ainda não se recorria à expressão “última hora” para assinalar a urgência e a importância de uma notícia. Eram campainhas que tocavam. E elas tocaram em toda a comunicação social que recebia o serviço da agência para dizer que o ministro das Finanças, Cavaco Silva, fora, nessa manhã, “alvo de uma tentativa fracassada de rapto”, citando como fonte “um porta-voz das Forças Populares 25 de Abril”. E acrescentava: “Na operação reivindicada pelas FP-25 foi ferido a tiro um polícia que fazia segurança à residência do ministro, à porta da qual se registou o atentado, no cruzamento da Travessa do Possolo com a das Palmas.”

Seguia-se, minutos depois, a “versão ministerial”. “Círculos próximos do ministro das Finanças recusaram-se hoje a admitir que Aníbal Cavaco Silva, 42 anos, tivesse sido alvo de uma tentativa fracassada de rapto”, escrevia a ANOP. A fonte, identificada, era Maria Cavaco Silva. A mulher do político, que viria a ser primeiro-ministro e Presidente da República, narra que, por volta das 11h, ocorrera um incidente quando o marido “se ausentara de casa para o seu ‘circuito habitual’ pelo bairro”.  O que se passara, na sua opinião, tinha sido uma tentativa de roubo de um automóvel. “O local é ermo e já não é a primeira vez que isto acontece. Ao próprio ministro [antes de o ser] já lhe roubaram o automóvel nesse sítio”, dizia Maria.

No dia seguinte, as primeiras páginas dos jornais falavam do caso. Como o Diário de Lisboa, que dedicava à organização terrorista três notícias, uma sobre apreensão de armas, outra sobre Cavaco Silva e uma terceira sobre os assaltos não reivindicados a estações dos CTT. “Esposa de Cavaco Silva não acredita que tentaram raptar o seu marido”, lia-se na primeira página.

O que aconteceu nesse dia na vida de Cavaco Silva e na da ANOP — que viria a ser extinta pelo próprio Cavaco quando chegou a primeiro-ministro — serve aos dois autores como exemplo dos tempos conturbados que o país vivia e que tornavam difícil a fronteira entre jornalismo e política. “Em 1980, as FP-25 estavam particularmente activas e tinham ‘antenas’ em praticamente todos os órgãos de comunicação social em Portugal. A ANOP era um deles. Embora as normas em vigor na informação pedissem aos jornalistas a maior atenção aos comunicados dos grupos políticos não representados no Parlamento, nem sempre as chefias conseguiam evitar que se acumulassem notícias sobre os mesmos”, escrevem os dois jornalistas sobre um período que também testemunharam. Wilton Fonseca foi director adjunto e director de Informação da ANOP e da NP; Mário de Carvalho foi jornalista das mesmas duas agências. As FP-25 estiveram activas entre 1980 e 1989.

O episódio sobre Cavaco Silva não ficou por ali, nessa noite, embora fosse “o mais interessante” para os autores. Entre as 21h e as 22h, a ANOP difundiu nove notícias sobre as FP-25. O segundo texto da agência citava, de novo, um porta-voz anónimo das FP-25, segundo o qual a organização tinha apoio logístico do IRA — Exército Republicano Irlandês e relações com as facções militar e política da ETA (organização terrorista basca), com os espanhóis dos denominados Grupos Revolucionários Antifascistas Primeiro de Outubro (GRAPO), a Primeira Linha e as Brigadas Vermelhas italianas. As FP-25 diziam dispor de 300 elementos, repartidos por células de quatro a seis militantes cada.

Mais textos publicados nos minutos seguintes faziam a cronologia dos atentados reivindicados pelas FP-25, narravam uma detenção de membros da organização em Alcoutim e a morte de um soldado da GNR. Por fim, outra notícia a citar uma nota do Ministério da Administração Interna, distribuída pela Presidência do Conselho de Ministros: “O Governo considera que qualquer especulação noticiosa baseada em elementos não confirmados sobre actos desconexos de banditismo irá beneficiar os respectivos autores.” No dia seguinte, o Diário de Lisboa destacaria em primeira página: “FP-25 de Abril matam outro GNR. Quatro presos em Alcoutim.”

Na noite desse mesmo 14 de Maio aconteceria ainda o “misterioso caso da cassete das FP-25” deixada entre os caixotes de lixo da ANOP, com um comunicado. A reconstituição desse momento é feita com a ajuda da edição d'O Jornal de 16 de Maio.

Um homem, que se identificava como informador da organização, ligou por três vezes para a redacção da ANOP, “descreveu minuciosamente a entrada das instalações da agência” e levou quatro jornalistas para a rua à procura de uma cassete, sem sucesso. Esta conteria informação sobre detenções de membros das FP-25, o falhanço da “eliminação” de um agente da PSP e a ligação desta suposta movimentação à tentativa fracassada de rapto de Cavaco Silva. A cassete só viria a ser encontrada na manhã seguinte, precisamente no local indicado pelo informador, e que, ironizava O Jornal, “os jornalistas, virgens na matéria, não lograram identificar”.

Estes tempos quentes, instáveis, arrastavam-se desde a revolução, altura em que fora nacionalizada uma das duas agências do antigo regime, a ANI — Agência Nacional de Informação. A primeira ordem interna de serviço, emitida assim que foi nacionalizada em 11 de Novembro de 1974, recomendava: “Deixamos de dar relevo desmedido às querelas entre os partidos democráticos” e “passamos a fazer notícias — sempre — dos editoriais dos jornais Povo Livre e Portugal Socialista”, jornais oficiais do PPD e do PS, respectivamente. Uns meses mais tarde, a 20 de Janeiro de 1975, outra ordem interna reagia à cobertura de uma manifestação da Intersindical a favor da unicidade sindical. A direcção entendeu que os seus jornalistas tinham tomado partido, “em termos que não são próprios de uma agência noticiosa”: “Uma agência não tem de tomar partido (...). O que se diz para a unicidade diz-se naturalmente para a posição contrária (...). O nosso papel é dar notícias. Não é comentá-las nem tomar partido.”

Heróis Anónimos — Jornalismo de Agência procura as razões pelas quais um pequeno país de escassos recursos manteve durante quase 40 anos duas agências noticiosas a funcionar, duas durante o Estado Novo (ANI e Lusitânia) e outras duas no pós-revolução (ANOP e NP). A obra centra-se especialmente nestas duas últimas até 1986, ano em que deram origem à Lusa.

“Tratava-se apenas — e uma vez mais — de um sinal de desorientação do Estado português, que não conseguia determinar o papel que deveria caber a uma agência noticiosa nacional.”  Para os autores, a história das agências noticiosas em Portugal após o 25 de Abril é como o Macbeth, de Shakespeare: “Há profecias sombrias sobre o futuro.”

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Macbeth é o “lado político” da história do jornalismo anónimo em Portugal, dos rostos que não assinam as notícias, não aparecem nos ecrãs da televisão, nem se ouvem aos microfones, mas fornecem um serviço indispensável para que os media cumpram a sua missão, “com notícias prontas a serem difundidas, lidas, publicadas ou como parte de uma peça maior de informação”.

Durante boa parte do Estado Novo, desde os anos 1940, o país teve a ANI e a Lusitânia. Depois da revolução, a ANOP e a NP. No desfecho de cada caso, os dois autores vão desfiando as “profecias sombrias”. “O Estado português nunca conseguiu perceber a importância estratégica que uma agência noticiosa pode representar para um país com interesses políticos tão diversos e geograficamente tão dispersos como Portugal”, dizem.

A 25 de Abril de 1974, co-existiam a ANI — Agência de Notícias e de Informações, fundada em 1947, e a Lusitânia, criada em 1942 por Marcello Caetano e de menor dimensão. Contam os autores que, nas vésperas da revolução, o próprio Caetano já estava decidido a acabar com a bicefalia, mas não iria ter tempo.

Comunistas e socialistas não se entenderam também sobre o assunto, nos meses seguintes à revolução. Os primeiros queriam o encerramento da Lusitânia e a nacionalização da ANI; os segundos, principalmente pela voz de Raul Rêgo, procuravam “encorajar a criação de um único serviço noticioso, que tomaria a forma de uma cooperativa”, ou seja, controlada pelos seus próprios utentes. A linha comunista impôs-se: a Lusitânia foi encerrada, a ANI nacionalizada em Novembro de 1974, dando origem à ANOP, em Julho de 1975.

“Foi com surpresa que vimos agora a agência nacionalizada. É propriedade do Estado e fica ao serviço deste. Parece-nos que se trata mais de um meio informativo ao serviço do Estado, na prática ao serviço do Governo”, contestava Raul Rêgo, no jornal República, com uma pergunta. Como pode uma agência fornecer notícias de todo o país e de todo o mundo “quando algumas delas não forem favoráveis ao governo? Aí está a grande interrogação”.

Em 1979, com a chegada ao poder do centro-direita, a discussão sobre o modelo de agência noticiosa para o país voltou à agenda política, e foi com o Governo de Pinto Balsemão que se enveredou por uma empresa não estatal e de estrutura cooperativa dos meios de comunicação, inspirada na experiência do centro e Norte da Europa. O executivo não escondia que, com essa decisão, procurava também tirar a influência comunista de dentro da ANOP.

O Governo de Balsemão viria a criar, em 1982, a NP — Notícias de Portugal, sob a forma de cooperativa de utentes, mas não conseguiu extinguir a ANOP, devido “à feroz oposição dos sectores mais à esquerda”, recorda José Manuel Barroso, que foi director de Informação da ANOP, da NP e da Lusa. Para isso, foi decisivo o veto do então Presidente da República, Ramalho Eanes. “E Portugal viu-se a braços com duas agências noticiosas, em vez de uma. Ambas dependiam dos contratos de fornecimento de serviços que mantinham com o Estado. Repetia-se a situação vivida durante três décadas”, analisam os autores de Heróis Anónimos.

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Em 22 de Julho de 1985, Otelo Saraiva de Carvalho, referência das FP-25, com outros então arguidos do processo FP-25 no Tribunal de Monsanto Luís Vasconcelos/Arquivo

A NP viria a durar menos de quatro anos. Era concorrente da ANOP, que lutava por uma reestruturação financeira. A Notícias de Portugal arrancou com 25 jornalistas, 15 dos quais ex-ANOP, em 2 de Novembro de 1982, no mesmo dia em que Eanes vetaria o diploma da extinção desta, obrigando o Governo a levantar a questão no Parlamento.

Foi Cavaco Silva quem, no seu primeiro Governo, acabou com a “guerra’ entre dois modelos de agência, duas agências num mesmo diminuto mercado”, contam Wilton Fonseca e Mário de Carvalho, criando uma única agência noticiosa nacional, a Lusa. A ANOP seria extinta por decreto e a NP foi parte fundadora da Lusa. Esta começou a funcionar a 1 de Janeiro de 1987, há quase três décadas. Ainda continua a ser mais longo o tempo que o país viveu com duas agências (cerca de 40 anos).

“A história das agências em democracia foi sobretudo resultante de opções político-partidárias de cada Governo, confundindo-se agência noticiosa com as visões das sucessivas tutelas. Isto é, a um tempo empresa pública, a outro cooperativa e, no final, salomonicamente empresa mista”, prossegue José Manuel Barroso.

Nem todos os jornalistas das histórias das 500 páginas do livro continuaram anónimos. A ANOP tinha no seu corpo redactorial um grupo de “Grandes Repórteres” ou “Especiais”, constituído por jornalistas “de renome”. Era um núcleo que procurava responder a um mercado receptivo a textos de assinatura, como as grandes reportagens, as entrevistas e os serviços especiais, entre outros.

Desse grupo faziam parte Joaquim Letria, Maria Antónia Palla, Helena Vaz da Silva, José Gabriel Viegas, António Mega Ferreira, Carlos Veiga Pereira e Rui Pereira, bem como João Carreira Bom, Roby Amorim, Luís Paixão Martins e Luís Pinheiro de Almeida. Era uma “espécie de ‘montra’ da agência”. Wilton Fonseca e Mário de Carvalho fazem uma síntese da existência breve e conturbada deste grupo: “Uma administração que se vê perante um grupo de jornalistas em que não confia politicamente, para o qual não dispõe de verbas de funcionamento e que ainda por cima não goza do apoio dos seus colegas de trabalho não pensaria duas vezes antes de decretar o seu desmantelamento.” E foi o que aconteceu. Parte do grupo acabou em cargos públicos destacados e ou a fazer carreira na escrita.

Voltando a 14 de Maio de 1980, dia em que as FP-25 alegadamente tentaram, e não conseguiram, raptar Cavaco Silva. Naquela noite, os espanhóis do Valência foram ao estádio de Heysel, em Bruxelas, ganhar aos ingleses do Arsenal por 5-4, já em tempo de grandes penalidades. Foi a única vez que um clube ganhou a Taça das Taças a penáltis. Até nisso os tempos eram outros. 

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