Luís Filipe Rocha, cineasta português: “Não fiz um único filme que não quisesse”
Cinzento e Negro, esta quinta-feira nas salas, é o filme mais recente de um realizador que nunca se integrou em gerações ou linhagens, inspirado pela literatura tanto como pelo cinema.
“Sou um cineasta português,” diz o realizador Luís Filipe Rocha. O que isso quer dizer não é necessariamente aquilo que parece – à imagem de uma carreira que nunca “pertenceu”, e de um filme, Cinzento e Negro, décima longa-metragem do cineasta em 40 anos de carreira, que parece fazer questão de subverter as expectativas do espectador.
“Se calhar,” continua, “se fosse espanhol, francês, no limite americano, em vez de dez filmes teria feito 20 ou 30. Mas sou português. Tenho os filmes que me deixam fazer, ou que posso fazer.” A saber: A Fuga (1976), Cerromaior (1981), Sinais de Vida (1984), Amor e Dedinhos de Pé (1992), Sinais de Fogo (1995), Adeus, Pai (1996), Camarate (2001), A Passagem da Noite (2003), A Outra Margem (2007) e agora este Cinzento e Negro que chega às salas esta quinta-feira. São os filmes que quis?... “Ah, sim! Não fiz nem um único que não quisesse. Houve alguns que quis e não pude.”
Sugerimos a palavra “integridade” para definir esse percurso – sempre escrevendo e dirigindo, apostando numa atenção à dimensão da história e da narrativa como poucos foram capazes na produção nacional. “Desde muito pequenino que sempre adorei ouvir contar histórias”, explica Rocha, hoje com 68 anos. “Uma das primeiras imagens que tenho é ouvir o meu bisavô contar histórias ao meu pai à luz do petróleo, no tugúrio onde ele vivia na Beira Alta. O meu pai queria escrever as histórias que ele tinha vivido como guarda na penitenciária de Lisboa, mas não me mandava deitar e eu ficava fascinado a ouvir. E quem tanto gosta de ouvir contar histórias, mais dia menos dia, também gosta de as contar.”
Ao longo de uma hora de conversa numa sala luminosa nas instalações da sua produtora, “integridade” será uma de três palavras recorrentes. Outra, que entronca na anterior: “individualismo”. “Pelo meu próprio ritmo de trabalho, poderia ter mais filmes,” diz. “Mas tive agora um interregno grande que teve a ver com projectos que não avançaram. Fundei três ou quatro produtoras, fundei as duas associações de realizadores que existem... Mas não volto a produzir um filme, não volto a pertencer a uma associação, não pertenço à Academia Portuguesa de Cinema. Individualismo é uma palavra que me calha muito bem. Diria que a soma do individualismo com integridade talvez dê independência. Essa é a terceira palavra que eu acho que se pode usar a propósito do meu trabalho.”
Confere: o percurso de Luís Filipe Rocha sempre se manteve teimosamente singular no cinema feito cá. “Nunca pertenci a grupos, gerações, tribos ou seitas, nunca frequentei capelinhas”, diz Rocha sorrindo. “A minha geração, em termos de idade, sou eu, o João Botelho, o José Nascimento e o Jorge Silva Melo. Não é uma geração, somos quatro… E sou autodidacta enquanto cineasta. Fui sempre aprendendo fazendo, a escrever, a montar, inclusivamente a dirigir os actores. Tirei o curso de Direito, na faculdade fiz teatro, nunca na minha cabeça me tinha ocorrido fazer cinema.” Uma descoberta feita, como diz, “por acaso”. “Fui convidado para ser actor no Recado, do José Fonseca e Costa [1972], fui para o Brasil, fiz lá teatro, cansei-me um bocadinho e quando voltei, a seguir ao 25 de Abril, 'deixa-me lá ver o cinema', convencido de que não iria ficar o resto da minha vida a fazer filmes. Acabei por ficar. Casa-se bem com a minha maneira de ser, de pensar e de contar.”
No lugar do espectador
Essa maneira de ser coloca-o, sempre, no lugar de quem paga bilhete na sala para ver um filme. “Como espectador, faço sempre um exercício”, explica Luís Filipe Rocha. “Como é que gostaria que me contassem esta história? E fui aprendendo. São coisas que fui estruturando por mim próprio. Sou o primeiro espectador dos meus filmes, e também o mais exigente e cruel dos críticos. Sou implacável quando chego à montagem. Se serve, fica; se atrapalha narrativamente ou chateia, sai.”
Cinzento e Negro, diz, “é muito eloquente” a esse nível – um filme seco, descarnado, “rente ao osso”, onde uma mulher marcada pela vida (Joana Bárcia) vai aos Açores em busca do homem que a traiu (Miguel Borges), com a ajuda de um polícia a apanhar os cacos da sua vida (Filipe Duarte). Não é, ao contrário, do que possa parecer, um policial – embora tenha elementos desse género – e recusa-se a fixar-se numa “gaveta”. É, isso sim, nas palavras de Luís Filipe Rocha, um filme que marca uma “ruptura”: “Escrevi este filme de uma maneira completamente diferente dos anteriores. Primeiro, parti de imagens soltas – é provavelmente o primeiro filme que faço que parte de imagens, não de uma história nem de um tema nem de uma ideia. Em 2003, no dia 11 de Setembro, fui a uma agência funerária encomendar o funeral do meu pai. Só havia uma pessoa para me atender: uma mulher que coxeava e tinha uma bota ortopédica. Por aqueles acasos aos quais sou sempre muito atento, três semanas depois fui a Almada, e vi passar do outro lado da rua a mulher da agência, com não sei quantos sacos de compras, a coxear na sua bota ortopédica, e ao lado dela um pintarola de mãos nos bolsos e cigarro, que pela displicência só podia ser o companheiro dela. E essas duas imagens viajaram pelos anos dentro de mim, até que em 2008, depois de A Outra Margem, disse, 'bom, vamos lá tratar da coxa'”.
Rocha sorri com a crueza quase anedótica da imagem, antes de continuar. “É um filme impregnado de uma matéria que eu não consigo decifrar completamente. Por causa da maneira como escrevi, tentando sempre não dirigir as personagens, parando à espera que elas decidissem o passo seguinte, decidi que tinha de escolher os actores um bocado pela intuição. Quando não conheço os actores, e mesmo às vezes quando os conheço, faço testes de horas até ter a certeza absoluta – por exemplo para o Camarate, até chegar à Maria João Luís, testei nove ou dez actrizes, e repetia os testes dias depois. Neste filme não fiz um único teste, nem de imagem, foi completamente sem rede. O guião viaja por um território narrativamente diferente daquilo que pisei até agora. Tentei afastar-me de um certo realismo habitual do cinema; criar uma coisa mais descarnada, mais romanesca, mais profunda.”
As referências de Cinzento e Negro são, talvez por isso, menos do cinema do que da literatura – coisa que não é invulgar em Rocha (“posso viver sem filmes, mas é impensável viver sem livros!”). A primeira é Milan Kundera, de quem o novo filme aplica, de modo “quase obsessivo”, uma regra básica para explicar os cambiantes de personagens que nunca são inteiramente “boas” nem “más” – “a suspensão do juízo moral na arte do romance: não há juízos morais na ficção.” A segunda, as tragédias gregas: “Continuam a ser para mim o melhor instrumento de estudo, análise e decifração da alma humana. Não há manuais de psicologia que nos expliquem mais. E quando comecei a escrever, vi imediatamente o Pico. Se pensar que as tragédias gregas eram representadas em teatros ao ar livre, com luz natural e em locais elevados, o Pico é para mim um palco trágico.” Há mais – Moby Dick, de Herman Melville, Mulher de Porto Pim, de Antonio Tabucchi, As Ilhas Desconhecidas, de Raul Brandão, Cesare Pavese, Ismail Kadaré, Jorge Luis Borges...
Mas Rocha avisa: “A minha relação privilegiada com a literatura nunca influenciou o meu cinema de um ponto de vista literário estrutural, mas sempre me ajudou no meu lado romanesco.” Há, por isso, também muito cinema em Cinzento e Negro; mais uma vez, contudo, não será o que se espera. Ao policial e ao filme negro, o realizador começou por ir buscar o macguffin, o elemento narrativo definido por Alfred Hitchcock que serve apenas de “gatilho” para pôr a narrativa em marcha. “E é o macguffin mais estafado da história do cinema, que é um saco de dinheiro atrás do qual as pessoas correm.” Juntou-lhe a “encomenda” da música original ao pianista Mário Laginha, invocando o cinema francês de François Truffaut (Disparem sobre o Pianista ou A Noiva Estava de Luto) ou Louis Malle (Fim-de-semana no Ascensor).
E, depois, há o western, que aparece por interposta pessoa de Jorge Luis Borges.“O Borges dizia que a literatura no século XX descartou e esqueceu o épico, mas que Hollywood nos tinha dado o western como épico do século XX. Nesse sentido, toda a parte final do filme tem uma estrutura de mise en scène de western, o que também tem a ver com a ligação à viagem da Odisseia e à paisagem açoriana.”
Uma paisagem à qual Luís Filipe Rocha regressa, 20 anos depois de Adeus, Pai, mas aqui recusando por inteiro a dimensão turística. “No Adeus, Pai tomei os Açores pelo lado do paraíso imaginário, do princípio da vida. Desde então que queria voltar a filmar nos Açores. O Pico tornou-se na quinta personagem do filme, e cheguei a dizer ao [produtor] Luís Galvão Teles que se não conseguisse filmar nos Açores entupia, não sabia onde conseguiria filmar; é o lado trágico, o lado duro e vulcânico.” Que encaixa na perfeição nesta história de personagens solitárias – “rachadas”, nas palavras de Rocha –, habitando zonas “mais sombrias, mais profundas, menos imediatas, mais negras, mas negras não no sentido de policial, antes no sentido de escuro, de cinzento e negro”. Está tudo no título.
CINZENTO E NEGRO, um filme de Luís Filipe Rocha from Fado Filmes on Vimeo.