Se é extraordinário e obrigatório, trate-se como tal!
Saibamos exigir ao poder político o merecido reconhecimento e dignidade pela qualidade da Medicina praticada no nosso país.
O Orçamento de Estado (OE) de 2013 contemplou um corte de 50% no valor atribuído ao trabalho extraordinário realizado no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Apresentada como transitória, a medida manteve-se nos exercícios de 2014 e 2015, já depois da vigência de um plano de assistência económico-financeira que a havia introduzido. Passado um período de emergência financeira, a expectativa era a de que, de forma gradual ou definitiva, este constrangimento fosse removido na proposta orçamental deste ano, sobretudo quando o novo Governo se apresentou aos portugueses com o compromisso de virar a página sobre a austeridade e devolver rendimento às famílias. Como se antecipa, não foi bem isso que aconteceu.
De facto, através de um discreto artifício jurídico, o OE para 2016 mantém intacta a penalização do trabalho suplementar em 50%, quebrando as legítimas expectativas dos médicos - assim como dos restantes profissionais de saúde - em ver a medida revogada. Desta forma, perpetua-se uma medida alegadamente temporária e descrimina-se negativamente os profissionais que são mais afectados pelo expediente do trabalho extra a que são obrigados.
Para os médicos, a redução do pagamento do trabalho suplementar é especialmente injusta, na medida em que a sua prestação anual é sempre muito acima do limite das 150 horas suplementares anuais previstas para os restantes funcionários públicos.
Quem conhece a realidade do SNS, sabe que os tectos máximos, incluídos no limite das 48 horas por semana, são com frequência largamente ultrapassados, sobretudo quando está em causa o trabalho em serviço de urgência ou atendimento permanente. Caso contrário o SNS entraria em colapso. Se esta realidade existe e é, de certa forma, incontornável, não pode ser tratada como uma normalidade orçamental, dando por adquirido que um horário suplementar pode ser pago como se de um horário normal de trabalho se tratasse.
Não é moralmente aceitável nem eticamente correcto que o Governo “obrigue” os médicos a prestar trabalho extraordinário, muito para além dos limites legais impostos na função pública, e simultaneamente os penalize em 50% do valor do seu trabalho. De resto, o Governo continua, de forma incompreensível, a pagar muito mais às empresas prestadoras de serviços médicos, que muitas vezes subcontratam médicos indiferenciados, sem rotinas de equipa, de coesão, de funcionalidade e de hierarquia.
É por isto que sou totalmente solidário com os colegas que, recentemente, deram nota da sua insatisfação num inquérito promovido pelo Sindicato Independente dos Médicos. As conclusões são claras: a esmagadora maioria contesta a manutenção do corte de 50% e recusa ultrapassar o limite de horas extra previstas na lei, caso a medida se mantenha. O descontentamento compreende-se com relativa facilidade, se pensarmos que um médico no patamar intermédio da carreira recebe pouco mais de dois euros por hora, em regime de trabalho extraordinário diurno. Ou se pensarmos que um médico com mais de 55 anos - a quem é possível recusar serviço de urgência - pode receber o mesmo valor. Ou, ainda, se pensarmos que o trabalho extraordinário de um recém-especialista vale 1,98 euros por hora, no mesmo horário.
Quando olhamos para estes números percebemos, por um lado, que não constituem incentivo para ninguém e, por outro, que não é possível mais condescendência. A causa é mais do que justa e o tempo é de intervir. Saibamos exigir ao poder político o merecido reconhecimento e dignidade pela qualidade da Medicina praticada no nosso país. Não podemos continuar a manter uma atitude passiva.
Presidente do Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos